02/11/2017

O estudo descontextualizado do Egito

Além das obras de arte da época, muitos estudos indicam que o Egito já teve faraós negros. Imagem: Reprodução. 

     A África é considerada o berço da civilização e há anos que o Egito é estudado nas escolas por conta de sua complexa organização social e também  pelos avançados instrumentos tecnológicos por eles usados. Entretanto, embora esteja havendo uma mudança lenta e gradativa nesta questão, o fato é que o Egito não é estudado dentro de seu devido contexto. 
     O continente africano é considerado o berço da humanidade porque é na África que há a maior diversidade genéticas entre os humanos. Além disso, os fósseis de ancestrais humanos mais antigos do mundo foram encontrados neste mesmo continente, onde se acredita que a espécie que mais  tarde seria o ser humano só existiria lá, se espalhando posteriormente pelas demais partes do globo. E, por fim, todas as espécies mais próximas do ser humano são oriundas da África, como por exemplo os gorilas, chimpanzés e bonobos (também chamados de chimpanzé-pigmeu, chimpanzé-anão e grácil). Sem dúvidas, o Egito é o país africano mais estudado do Mundo Antigo por conta de sua complexa organização social. Estabelecidos nas margens do rio Nilo, a civilização egípcia construiu coisas super complexas para a época e que não haviam em nenhum outro lugar do mundo, como por exemplo diques, canais de irrigação, templos e pirâmides (que até hoje ninguém sabe ao certo como elas foram construídas). Não tem como falar em história da humanidade e não citar o Egito e a África.

Bastidores da gravação da novela Os Dez Mandamentos (2015). Imagem: Divulgação/TV Record. 

     Mesmo os fatos acima citados sendo estudados em sala de aula, os mesmos são retirados de seus contextos. Eu só vim saber que a África é o berço da civilização depois que terminei o Ensino Médio e me preparava para o vestibular. Com relação ao Egito, eu estudei o mesmo na escola, mas em nenhum momento era dito que o Egito fica na África. Era como se o mesmo ficasse no limbo. Me lembro dos livros didáticos dizendo que o Brasil fica na América no Sul, os EUA na América do Norte, a Bélgica na Europa e por aí vai. Entretanto, ninguém dizia que o Egito fica na África. Além disso, os faraós e os egípcios em geral eram retratados nestes mesmos livros que usei na escola como pessoas morenas e até mesmo brancas. Ninguém dizia que as mesmas eram negras. Por sua vez, as produções audiovisuais compactuam com tais práticas. Impossível adentrar este assunto e não citar o filme cult e clássico Cleópatra (1963). A protagonista Elizabeth Taylor (1932 - 2011), bem como a maioria do elenco em questão são brancos. Detalhe: o Egito fica na África, cuja população é majoritariamente negra. Desta forma, tudo indica que Cleópatra (69 a. C. - 30 a. C.) era negra. A trama bíblica do mega sucesso Os Dez Mandamentos (2015), que também virou filme, é ambientada no norte da África e os personagens não são majoritariamente brancos. Entretanto, os atores que atuaram na novela são. Ao invés de contratar atores negros, a TV Record deu os principais papéis para atores brancos, que ficaram "morenos" com quilos de maquiagem. 
     Mas por que isso acontece? Para responder a esta pergunta, é preciso lembrar a escravidão de negros oriundos do continente africano. Um dos muitos instrumentos usados pelo regime escravista foi o esquecimento. Quando os africanos foram para a diáspora no Brasil, lhes foram arrancados a sua família, seu nome, sua identidade, sua cultura e sua crença. Em novas terras, foram obrigado a assumir outra identidade. Reis, rainhas, nobres e sacerdotes foram tirados de sua terra e escravizados. Sem o conhecimento de suas origens, ficam enfraquecidos e consequentemente sem forças para lutar contra a escravidão, um dos maiores crimes contra a humanidade que este mundo já viu. 
     Além disso, o regime escravista usou o discurso de que os negros são inferiores, "não possuem capacidade intelectual desenvolvida" e precisavam se redimir de seus supostos pecados. Desta forma, não seria conveniente dizer para os negros escravizados que seus ancestrais eram reis e nobres, como também não seria conveniente dizer aos mesmos que uma das maiores civilizações que este mundo já conheceu e que possuíam uma organização que até hoje deixa estudiosos e leigos boquiabertos fica na África. Também não era conveniente dizer que boa parte dos acontecimentos narrados na Bíblia têm como cenário o norte da África e que há fortes indícios de que tanto o Jesus que assumiu a forma corpórea, como aquele que João viu e descreveu em Apocalipse são negros. Se a população africana deveria ser redimida de seus pecados (e isso seria feito por meio da escravidão), não seria adequado dizer que parte das histórias bíblicas acontecem na África. 
      Como eu já disse nesse texto, o racismo age da seguinte forma: ou ele embranquece o negro ou joga o mesmo no esquecimento. Como o Egito Antigo foi uma civilização com uma organização complexa e organizada e, portanto, impossível de ser esquecida, o mesmo é estudado nas escolas. Todavia, existia (talvez ainda existe) uma condição: os faraós e demais egípcios devem ser representados como brancos ou no máximo morenos. Negros jamais. Você aí deve estar pensando: "mas hoje em dia isso não existe, a escravidão acabou em 1888!" ou "aquela lei de 2003 que obriga o ensino de História da África e das culturas indígenas está em vigor e agora tudo isso mudou". Só tenho a fazer duas observações. Um: a escravidão só acabou no papel, mas os elementos da mesma ainda se fazem presentes na atualidade. A maioria dos moradores da periferia são negros, a maioria daqueles que apresentam baixos índices de escolaridade são negros, a maioria dos encarcerados são negros e a maioria dos mortos pela polícia também são negros. Além disso, a maioria dos negros realizam serviços similares aos que seus ancestrais faziam quando eram escravizados: faxineiros, cozinheiros, empregadas domésticas, babás, motoristas, seguranças e pedreiros. Dois: de fato, há uma lei que obriga o ensino de História da África e das populações indígenas nas escolas. Porém, há uma diferença entre a teoria e a prática. Mesmo com essa lei, muitos professores não recebem uma formação adequada nas universidades com relação à história do continente africano e populações indígenas. Além disso, tem professores que simplesmente não ensinam tais coisas, embora a obrigatoriedade do ensino seja lei.
      O regime escravista acabou em 1888, mas a estrutura racista do mesmo ainda se faz presente na sociedade brasileira. É esta mesma  estrutura que mantém os negros na base da pirâmide social, executando serviços não muito diferentes do que seus ancestrais executavam quando eram escravizados. E, assim como nos tempos da escravidão, o homem branco continua a se utilizar do esquecimento para manter os negros como a mão de obra mais barata do mercado. É como diz Elza Soares em A Carne (2003): "A carne mais barata do mercado é a carne negra". 

Conclusão

     Embora isso esteja mudando gradativamente, o fato é que para muitas pessoas o Egito fica em qualquer outro lugar, menos na África. Isso acontece porque o homem branco historicamente tentou apagar da memória do negro tudo aquilo que remetia às suas origens e ao seu povo, já que sem o conhecimento e a memória fica mais fácil derrotar um povo. Mas ainda bem que isso está mudando. Aos poucos, mas está mudando. 

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