07/11/2017

A questionada definição de "onda conservadora"

Manifestante pedindo intervenção militar durante manifestação. Imagem: Reprodução. 

     Algumas pessoas classificam o momento tenebroso que o Brasil vive como "onda conservadora". Entretanto, o modo como as coisas são ditas dão a entender que o conservadorismo é um fenômeno recente na história do país.
     Vivemos um período em que os poucos e tímidos direitos dos LGBTs, negros, mulheres e pobres estão seriamente ameaçados. Crimes e discursos de ódio contra os grupos aqui citados são constantemente notíciados nos jornais. É a aprovação da PEC do fim do mundo, da Reforma Trabalhista, da Reforma Curricular do Ensino Médio e a aprovação da terapia de reversão sexual, que permitiria a "cura gay". É um período de retrocessos sem igual na história do país e alguns chamam tal de "onda conservadora". Entretanto, esta classificação é alvo de questionamentos.

O ex-presidente Lula ao lado do atual prefeito da cidade do Rio de Janeiro Marcelo Crivella. O apoio da bancada evangélica ajudou o PT chegar à Presidência da República. Imagem: Reprodução.

     Quando se fala em "onda conservadora", dá a entender que o período anterior a esta onda era um verdadeiro paraíso onde não havia crimes de homofobia, feminicídio, racismo e pobreza. Sabemos que não é bem assim. Se deve reconhecer que no período em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve no poder (2003-2016), as minorias conquistaram seus direitos. Poucos, mas conquistaram. O avanço na construção de uma sociedade mais igualitária não foi mais profundo justamente porque o PT fez sua política conciliando classes sociais extremamente opostas. Se o pobre conseguia comprar um carro, a indústria automobilística recebia incentivos do governo; se o pobre conseguia comprar passagens de avião, as companhias aéreas recebiam benefícios do governo e por aí vai. Nesta política de conciliação, o PT fez aliança com o empresariado, os ruralistas e a bancada evangélica. Se nos últimos tempos a bancada evangélica votou em massa a favor do afastamento de Dilma Rousseff, a favor da Reforma Trabalhista e "salvou" Michel Temer da investigação duas vezes, saiba que nem sempre foi assim. A bancada evangélica foi essencial para que Lula fosse eleito e posteriormente reeleito Presidente da República, em 2002 e 2006 respectivamente. Esta mesma bancada ajudou Dilma Rousseff a ser eleita Presidente da República, em 2010. Em 2014, onde o quadro político se mostrava bastante acirrado como nos dias de hoje, tal bancada se mostrou dividida e parte considerável da mesma apoiou o então candidato à presidência Aécio Neves.
     Foi justamente esta conciliação de classes que impediu que as mudanças estruturais na sociedade brasileira fossem mais profundas. Embora o poder aquisitivo do pobre tenha aumentado, a desigualidade social ainda é latente no país. Se o número de pobres e negros nas universidades aumentou consideravelmente, os negros ainda continuam sofrendo racismo e sendo vítimas do genocídio da polícia. Em 2010, Dilma Rousseff foi eleita Presidente da República. Era a primeira vez que uma mulher chegava no cargo mais alto da política republicana brasileira. Do ponto de vista da representatividade, tal fato é importantíssimo. Entretanto, uma mulher sozinha, por mais que esteja no cargo mais alto da política, não é capaz de romper com a histórica e arraigada estrutura patriarcal, um dos pilares da sociedade brasileira. Por conta disso, as mulheres continuaram com uma jornada de trabalho mais longa que a dos homens, elas continuaram sendo vítimas de estupros, violência doméstica e feminicídio. Além disso, não houve avanços na questão da legalização do aborto, uma das principais pautas do movimento feminista no Brasil. Aí esbarra em um dos grandes opositores de tal bandeira: a bancada evangélica. Esta bancada cresce a cada eleição que passa e tem a finalidade única e exclusiva de barrar pautas que não estão de acordo com seu credo. A bancada evangélica é em massa contra a legalização do aborto em qualquer circunstância, mesmo naquelas que são asseguradas pela Carta Magna, como em casos de estupro, quando o feto não apresenta massa encefálica ou quando a gravidez coloca a vida da gestante em risco. Esta bancada impediu que a pauta da legalização do aborto fosse adiante e também que o "kit gay" fosse usado nas escolas brasileiras. Para quem não sabe ou não se lembra, o Escola sem Homofobia (que recebeu a alcunha pejorativa de "kit gay") eram vídeos elaborados pelo Ministério da Educação (MEC) em convênio firmado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que tratavam de homossexualidade, transexualidade e bissexualidade entre os jovens. O material, que ainda tinha três vídeos e guia de orientação para os professores, tinha como finalidade debater a sexualidade no ambiente escolar. O objetivo era distribuir o material para professores e estudantes do Ensino Médio de todo o país. Porém, o projeto não foi para frente. Assim que o MEC divulgou o kit, ele foi alvo de críticas e gerou muita polêmica entre os setores mais conservadores do país e do Congresso Nacional. Jair Bolsonaro, então deputado pelo Partido Progressista (PP) do Rio de Janeiro, foi um dos primeiros a se posicionar contra o projeto, dizendo que o MEC e grupos LGBTs "incentivaram o homossexualismo (sic) e a promiscuidade" e tornam os filhos "presas fáceis para pedófilos".

Mulheres na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 1964. Imagem: Reprodução/Blog CPDOC Jornal do Brasil. 

     A questão é muito maior do que o PT e/ou Lula e/ou Dilma. Culpar o PT por todas as mazelas do país é uma análise simplista e até mesmo ignorante. As mazelas que assolam o país são estruturais e históricas e o PT só deu continuidade a maioria delas. Ao longo da história, o país já vivenciou inúmeras manifestações conservadoras. Em 1964, poucos dias depois de João Goulart anunciar que as Reformas de Base seriam colocadas em prática, donas de casa, damas da alta sociedade, pastores evangélicos, comerciantes, policiais e políticos conservadores organizaram em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O objetivo do movimento era conter "uma ameaça comunista representada pelas ações dos grupos radicais e pelo discurso em comício realizado pelo então presidente João Goulart em 13 de março daquele mesmo ano." (saiba mais sobre o movimento aqui). Pouco tempo depois, João Goulart seria deposto e uma ditadura que só acabaria em 1985 foi implantada. Aliás, além de  ser um golpe político, o golpe civil-militar de 1964 foi também um golpe moral. Temas como divórcio, feminismo, homossexualidade e liberdade sexual eram proibidos. Já falei sobre este assunto neste texto. Um pouco antes, em 1960, foi fundado por Plinio Corrêa de Oliveira a Tradição, Família e Propriedade (TFP), que no Brasil foi registrada como Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. A organização tinha a finalidade de combater as ideias maçônicas, socialistas e comunistas. Mais ou menos 20 anos depois, no começo do anos 1980, as Senhoras de Santana (uma alusão ao bairro de mesmo nome que fica na Zona Norte de São Paulo) se uniram em protestos contra a discussão da sexualidade na televisão. Em 1989, quando Lula e Collor disputavam a Presidência da República, o anticomunismo foi usado contra Lula. Diziam que o então candidato era defensor de regimes comunistas do leste europeu e que se ganhasse as eleições, o país viraria um caos. Lula perdeu e Collor foi eleito. O resto da história todo mundo já sabe.

Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro em América (2005). Imagem: Divulgação. 

     Em 1995, a novela A Próxima Vítima fazia o maior sucesso na TV Globo. Uma das tramas mais marcantes do folhetim e até hoje lembrada é a relação homossexual e inter-racial entre Jefferson (Lui Mendes) e Sandro (André Gonçalves). Estudiosos e bons moços, a relação dos rapazes foi relativamente aceita pelo público. Entretanto, André Gonçalves relatou que foi agredido na rua por conta do personagem em questão. Três anos depois, a novela do momento era Torre de Babel (1998). Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Sílvia Pfeifer) eram dois personagens da trama e viviam uma relação homossexual. O ódio dos telespectadores contra o casal foi tão grande que, para tirar ambas da trama, o autor matou as duas na épica explosão do Shopping Tropical Tower. Isso aconteceu porque em A Próxima Vítima os rapazes foram apresentados aos poucos ao público e uma vez que eles eram de bom caráter, houve certa aceitação do casal. Já em Torre de Babel, o telespectador soube desde o início que Leila e Rafaela formavam um casal lésbico, fato que causou a rejeição das personagens em questão. Uma curiosidade: as novelas em questão foram escritas por Silvio de Abreu. Alguns anos depois, mais precisamente em 2005, a novela do momento era América (2005), de Glória Perez. Uma das histórias principais da novela girava em torno de Júnior (Bruno Gagliasso), filho da Viúva Neuta (Eliane Giardini) e Zeca (Erom Cordeiro). Ao longo da história, Júnior e Zeca percebem que estão apaixonados um pelo outro. Os atores chegaram a gravar uma cena de beijo entre seus personagens, que iria ao ar, o que não aconteceu. A cena em questão nunca foi exibida.
     Os fatos acima mostrados provam que historicamente o Brasil é um país conservador. Tais fatos são epenas exemplos, uma vez que as manifestações conservadoras no país ao longo da história são incontáveis. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 25/12/2015, Vladimir Safatle disse que "o Brasil sempre foi um país com uma grande parcela de sua população claramente identificada ao pensamento conservador".

Conclusão

      O termo "onda conservadora" é problemático porque dá a entender que anterior a este período de retrocessos que o Brasil vive, o mesmo era um país onde imperava a igualdade, a tolerância e o respeito. Entretanto, não é isso o que aconteceu. Esta onda sempre esteve presente no país, a diferença é que nos últimos tempos ela tem crescido como um verdadeiro tsunami

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...