24/11/2016

A forte crítica social contida nos gêneros musicais populares


Cena do clipe da música Xibom bombom, do grupo feminino de axé As Meninas. Talvez muita gente não tenha percebido, mas o fato é que o hit em questão que foi sucesso entre fins de 1999 e início de 2000  tem uma forte crítica social. Imagem: Reprodução.



       Quando se fala em músicas proibidas durante a Ditadura Civil-Militar Brasileira (1964-1985) ou que contenham uma veia politizada, o que vem no imaginário popular são as músicas no estilo MPB (Música Popular Brasileira) e artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, Geraldo Vandré, Legião Urbana e Cazuza por exemplo. Aliás, ouvir tais artistas é sinônimo de cultura e elitismo. Por outro lado, estilos como axé, brega, funk e pagode é visto pela maioria das pessoas como "música alienada e de pobre". Mas será mesmo que esta "música alienada" de fato merece este título?
        Alguns períodos da República brasileira estão associados a determinados estilos musicais. O "Corta-jaca" de Chiquinha Gonzaga embalou o governo de Hermes da Fonseca (1910-1914), a bossa-nova de João Gilberto apelidou o presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), o rock de Legião Urbana e Cazuza brilharam nos tempos de José Sarney (1985-1990) e o sertanejo de Chitãozinho e Xororó brilhou durante o governo Collor (1990-1992). 
Odair José, símbolo da música brega na ditadura. Suas canções abordam as "relações opressivas no cotidiano", conta historiador. Imagem: Reprodução.
        Os ditos "anos de chumbo" da ditadura, que compreendem mais especificamente a presidência do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), também tiveram sua trilha sonora própria: a música popular na época chamada de cafona, conhecida hoje como brega, com nomes como Waldick Soriano, Odair José, Paulo Sérgio, Nelson Ned, Dom & Ravel e outros cantores românticos. Eles foram campeões de execução e vendagem no período em questão. Canções clássicas como Eu não sou cachorro, não Vou tirar você desse lugar foram lançadas nesta mesma época. Foi também neste período que a música brega se firmou como fenômeno social e de massa no país.
        Refletindo experiências individuais, o brega expressava a realidade de um grande público formado por empregadas domésticas, porteiros, balconistas e demais trabalhadores frequentemente humilhados no cotidiano. Este fato é evidenciado, por exemplo, na balada Não pise em cima de mim, lançada por Nelson Ned em 1973, que sutilmente pode levar à reflexão sobre as relações de poder em todas as esferas: "Não vá pensando que eu vou me deixar dominar/ por esse jeito arrogante que você tem de mandar/ não pise em cima de mim". A música brega tematizava o amor e também o poder. Não exatamente o poder ditatorial do regime civil-militar (assunto prioritário para a MPB), mas as relações opressivas no cotidiano. "Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo/ E se pudesse você fugiria desse mundo e nunca mais voltava", cantava Odair José, criticando a existência do minúsculo quarto reservado às domésticas nas residências de classe média. Outras canções denunciavam o tratamento cruel e degradante. "É cara a compreensão/ De graça a agressão/ O que será dos que virão?/ Respeito humano é o que não há", cantava Paulo Sérgio em 1972. A fronteira entre canção de amor e de protesto se torna muito tênue, porque o discurso da rejeição amorosa reflete também o discurso da rejeição social. Mesmo durante o período eufórico do "milagre econômico", o próprio ditador Médici admitiu em discurso oficial que "se a economia vai bem, a maioria do povo vai mal". E foi para os marginalizados na vida social e sentimental que Waldick Soriano compôs os versos "Eu não sou cachorro, não/ Para ser tão humilhado/ Eu não sou cachorro, não/ Para ser tão desprezado", da canção Eu não sou cachorro, não, que hoje está na memória nacional, assim como Asa Branca, Mamãe, eu quero e Luar do sertão.
Chico César é o cantor que canta a música Mama África. Imagem: Reprodução.


       Chico César é o autor e intérprete de Mama África (1995), música de ritmo popular, envolvente e que contém uma letra emblemática. Os versos "Mama África/ A minha mãe é mãe solteira/ E tem que fazer mamadeira todo dia/ Além de trabalhar como empacotadeira nas Casas Bahia" revelam a dupla jornada de trabalho de uma mulher negra (Mama África) que tem de cuidar dos filhos e trabalhar fora como empacotadeira, trabalho que não tem alto salário. O restante da letra diz: "Mama África, tem tanto o que fazer/ Além de cuidar neném/ Além de fazer denguim/ Filhinho tem que entender / Mama África vai e vem..." e o outro verso diz: "Quando Mama sai de casa/ Seus filhos de olodunzam/ Rola o maior jazz/ Mama tem calo nos pés/ Mama precisa de paz..." Estes versos citados revelam a dura rotina de uma mulher negra, solteira, mãe de muitos filhos, que possui dupla jornada de trabalho e que nem sempre tem tempo para suas crianças. Tal rotina acaba estressando Mama África, que precisa de paz. 
      Foi também em 1995 que o Rap da Felicidade (cantado por Cidinho e Doca) é lançado. A música possui uma veia politizada do começo ao fim. A letra fala de um morador da favela que tem dois desejos: ser feliz e se orgulhar de sua origem humilde. O eu lírico desabafa para um policial (minha cara autoridade) que, em meio a tanta violência, tem medo de viver porque mora em favela e é bastante desrespeitado por isso. Além disso, o mesmo tem de conviver com as constantes trocas de tiro que existem na favela e, se os ricos moram em uma bela casa, "o pobre é humilhado, esculachado na favela". O eu lírico revela também que não pode se divertir porque até nos bailes (talvez o único meio de diversão da população periférica naquele momento) a polícia está lá para humilhar os presentes, onde até pessoas inocentes estão perdendo a vida. Os versos da música em questão relevam também a indignação com a invisibilidade que é dada à favela e aos seus moradores, bem como a imagem da cidade do Rio de Janeiro que é vendida no exterior, onde os problemas concernentes à favela são completamente ignorados. Em tempos de UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), em tempos onde se fala tanto em violência policial e em tempos onde a população favelada, pobre e negra é morta a tiros de fuzil, o Rap da Felicidade continua sendo uma música atual, mesmo sendo escrita há mais de 20 anos. Infelizmente. 
      A imagem que abre este texto é uma cena do clipe da música Xibom Bombom, do extinto grupo de axé As Meninas. A música foi o título de um CD homônimo do grupo lançado em 1999. O sucesso de Xibom Bombom foi instantâneo e adentrou os anos 2000. Com ritmo envolvente, dançante, com frases repetidas e que sugerem duplo sentido, o hit em questão foi tocado exaustivamente nos rádios e na televisão (a internet não tinha o alcance que tem hoje e o Youtube sequer existia), botando muita gente para dançar, inclusive o autor deste blog. Entretanto, a música não se limita a isso: a mesma faz uma crítica social, coisa que o autor desse blog só iria perceber depois de adulto. Preste atenção nos seguintes versos: "Analisando essa hereditária/ Quero me livrar dessa situação precária/ Onde o rico cada vez fica mais rico/ E o pobre cada vez fica mais pobre/ E o motivo todo mundo já conhece/ É que o de cima sobe/ E o debaixo desce". O eu lírico analisa um sistema (a cadeia hereditária) onde o rico o enriquece e o pobre empobrece. O mesmo deseja se livrar desse mesmo sistema. Nos versos seguintes o eu lírico revela a sua intenção: "Mas eu só quero educar meus filhos/ Tornar um cidadão com muita dignidade/ Eu quero viver bem/ Quero me alimentar/ Com a grana que eu ganho não dá nem pra melar". Eram tempos de arrocho salarial, onde não se podia fazer muita coisa com o salário. Xibom Bombom foi lançada quando o Presidente da República era Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou o Brasil de 1995 a 2003. O governo de FHC foi marcado pela privatização de grandes empresas a um preço muito abaixo do valor real das mesmas, além do desemprego e pobreza extrema. A música Xibom Bombom vai muito além de um ritmo dançante e com refrão repetitivo. 

Conclusão

     A condenação aos gêneros musicais populares está encaixada em uma questão muito maior: a criminalização da pobreza, onde o pobre e tudo a ele relacionado são criminalizados. Esta mesma criminalização faz com que as músicas populares sejam vistas como alienadas e sem um viés político. Entretanto, uma análise mais aprofundada joga esta tese por terra. 

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