29/09/2016

A falácia do Estado laico

Charge do cartunista brasileiro Carlos Latuff criticando a presença da bancada evangélica no Congresso brasileiro. Imagem: Carlos Latuff.


     Teoricamente. Teoricamente. O Estado é laico desde a Proclamação da República, em 1889. Até então, o catolicismo era a religião oficial do Brasil Império. Na prática, a ligação entre Igreja e Estado permanece até hoje. A diferença é que atualmente existe um novo protagonista nesta história que vem roubando a cena: as igrejas evangélicas.
     O catolicismo era a religião oficial do Império do Brasil. Com o golpe militar republicano e o exílio forçado da Família Real Brasileira, o catolicismo foi separado do Estado na teoria. Na prática, esta ligação permanece até hoje. Os feriados de santos católicos são o exemplo máximo disso. No dia 20 de janeiro é celebrado na cidade do Rio de Janeiro o Dia de São Sebastião, padroeiro da cidade. Em 2016, o feriado de São Jorge foi no dia 23 de abril. O Dia de São João costuma ser no dia 24 de junho e o dia 12 de outubro (que também é Dia das Crianças) é feriado de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. O que foi descrito aqui foi só um exemplo, a lista de feriados de santos é ainda maior, uma vez que estas datas variam de estado para estado do país.
      A Igreja Católica ainda é muito influente no Brasil, mas nas últimas décadas esta igreja tem dividido a cena com as denominações evangélicas. Desde a década de 1970 que os evangélicos têm ingressado na política, mas o apogeu foi nos anos 2000, onde os evangélicos passaram a entrar massivamente na política, provando ser eleitores em potencial. Aliás, foram os evangélicos quem ajudaram Lula a ser eleito Presidente da República, em 2002. Os mesmos ajudaram Lula a se reeleger em 2006 e ajudaram também Dilma em 2010, quando foi eleita Presidente da República. A cada ano que passa a bancada evangélica cresce ainda mais. Em setembro de 2016, a Bancada Evangélica está composta de 84 deputados (as) federais e 3 senadores, totalizando 87 parlamentares. A Frente Parlamentar Evangélica (FPE), registrada seguindo o Ato da Mesa da Câmara, n. 69, de 10/11/2015 (que formalizou a existência de Frentes Parlamentares para que pudessem fazer uso de recursos da Câmara), é composta por evangélicos, católicos praticantes, católicos ligados à Renovação Carismática e deputados eleitos com o apoio de igrejas evangélicas, mas que não possuem vínculo com as mesmas. O momento em que ficou notória a presença de evangélicos no Congresso foi no dia em que a Câmara dos Deputados votou a favor do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Com a bandeira do Brasil e/ou de seus respectivos estados, os deputados que foram favoráveis ao afastamento de Dilma disseram estar fazendo isso em prol de suas famílias, dos filhos, da tia, da esposa, de Deus, de Jesus. Esse pessoal fala de Jesus como se Ele fosse um paladino da desigualdade social, da injustiça e da hipocrisia.
      Os parágrafos acima mostram a presença dos evangélicos no campo macro. Entretanto, a presença dos mesmos não se limitam ao macro: podem ser vistas no campo micro. Nas últimas décadas, os terreiros de umbanda e candomblé tem desaparecido das favelas e a presença de templos evangélicos tem crescido nitidamente. Praticamente, em cada esquina há uma igreja evangélica. Em bocas de fumo há desenhos com versículos bíblicos e hinos evangélicos. Cantores como Cassiane, Damares, Elaine Martins, Anderson Freire e Bruna Karla estão na playlist de muitos traficantes, que ouvem estes cantores em altos e potentes aparelhos de som. Por sua vez, os bandidos foram criados em alguma igreja evangélica da favela e/ou tem parentes que frequentam uma. Isso faz com que o pastor ou qualquer outro cristão seja respeitado pelos bandidos. Se deve destacar também que há a crença de que estas pessoas estão sob a proteção divina. Logo, se mexe com eles, está mexendo com Deus. Quando há um evento evangélico na favela, não é de se estranhar que os traficantes patrocinem os mesmos. Tal prática não é aprovada por algumas  lideranças evangélicas, mas há líderes que não se opõem a isto. Os bandidos pagam o que for preciso, inclusive patrocinando a vinda de cantores evangélicos de grande relevância no Brasil, que cobram cachês exorbitantes para cantar algumas músicas. Nas escolas que se encontram nas favelas, o reflexo do crescimento de igrejas evangélicas também é notório. Conheci um professor de Educação Física que sempre fazia uma oração com a turma antes de dar aula. Conheço também uma professora que diariamente ora com a turma antes de iniciar as aulas. Conheci também uma professora que diariamente, antes das aulas, trazia uma Bíblia para crianças e contava histórias bíblicas para as mesmas. Já um professor do primário que conheci costumava passar para as crianças músicas infantis da Aline Barros. Desde o ano passado que trabalho acompanhando crianças especiais dentro do ambiente escolar. Já auxiliei crianças com sintomas de autismo, com hidrocefalia, com retardo mental e cadeirantes. Esta minha vivência me tem permitido conhecer a prática de alguns professores.
      Na mesma proporção em que o número de igrejas evangélicas cresce nas favelas, o número de fiéis adeptos das religiões de matriz africana diminui na mesma região. Em favelas onde a presença de evangélicos é predominante, os adeptos da umbanda e do candomblé são impedidos de realizar seus rituais. Em casos extremos, estas pessoas podem até ser expulsas da favela onde moram. Foi o que houve com uma filha de santo que morava no Morro do Amor, Complexo do Lins, cidade do Rio de Janeiro. Iniciada no Candomblé em 2005, a jovem tinha de esconder tudo aquilo que denunciasse a sua religião (adereços e roupas brancas) e quando ia para o terreiro, saía de casa com roupas comuns e o vestido branco ia na bolsa. Um dia, por descuido, deixou a "roupa de santo" no varal. Na semana seguinte, a filha de santo estava sendo expulsa da favela pelos bandidos para não voltar mais. Caso semelhante aconteceu em Parque Colúmbia, na Pavuna, bairro da cidade do Rio de Janeiro. Uma mãe de santo tentou fundar nesta  mesma favela um terreiro. Não demorou muito e a mulher recebeu a visita do presidente da associação de moradores que a alertou: atabaques e despachos eram proibidos ali. A mãe de santo teve que sair fugida da favela onde morava. Em 2013 havia registros na Associação de Proteção dos Amigos e Adeptos do Culto Afro Brasileiro e Espírita de pelo menos 40 pais e mães  de santos expulsos das  favelas da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro pelo tráfico. Em locais como Lins, Serrinha e Madureira, além do fechamento dos terreiros, foi também determinada a proibição do uso de colares afro e roupas brancas.
        Muita gente talvez não saiba, mas o fato é que muitas músicas de capoeira fazem referência à umbanda e ao candomblé. Em várias favelas do Rio de Janeiro há a chamada "Capoeira Evangélica", que é um grupo composto por cristãos capoeiristas que pegam as tradicionais músicas de capoeira e introduzem elementos do cristianismo em tais. A "Capoeira Evangélica" é muito criticada por demais capoeiristas porque retiram elementos da cultura afro brasileira, reforçando os preconceitos existentes em torno desta mesma cultura. Entretanto, o sinal mais evidente da presença das igrejas evangélicas nas favelas é a queda na distribuição dos doces de São Cosme e São Damião. Em favelas onde os traficantes são de orientação evangélica a distribuição dos doces nos dias de São Cosme e Damião é proibida e a cada ano que passa esta prática vem acabando aos poucos. Na década de 1990, período em que vivi minha infância, era muito comum a distribuição  de doces nos dias de São Cosme e São Damião e às vezes distribuíam até brinquedos. Atualmente, a distribuição de doces nas favelas vem caindo, ao passo que as igrejas evangélicas vão aumentado. Isto não acontece atoa: as igrejas evangélicas demonizam os doces de São Cosme e São Damião, pois acreditam que os mesmos são amaldiçoados e oferecidos às entidades da umbanda e do candomblé. Acredita-se também que tais doces fazem mal a quem os comer. Em setembro de 2012, o jornal Extra publicou em seu site uma reportagem em que um pastor da igreja Projeto Vida Nova, na Vila da Penha, cidade do Rio de Janeiro, "convidada" as crianças para irem à igreja e trocarem os saquinhos de doces que conseguiram nas ruas pelos que a igreja ia oferecer. Juntos com os doces, as crianças recebiam uma Bíblia, pois era para comer "orando". Este mesmo pastor contou também que os saquinhos de doce de São Cosme e São Damião são queimados, desfazendo o suposto mal que aqueles doces traziam.
        O Estado é laico somente na teoria. Na prática, nunca foi e nem é laico. A diferença é que na atualidade as igrejas evangélicas estão crescendo em força e influência. Desta forma, o fundamentalismo religioso é uma realidade no Brasil. Somente com muita luta e resistência que esse fundamentalismo chegará ao fim. 

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