20/05/2016

Fórmula 1: um esporte praticado por machistas


Maria Teresa de Filippis, a primeira mulher italiana a pilotar um carro de Fórmula 1. Foto: Reprodução.

      A Fórmula 1 é a modalidade do automobilismo mais conhecida e mais lucrativa do mundo. É também a categoria mais avançada do esporte a motor e é regulamentada pela Federação Internacional de Automobilismo (Fédération Internationale de I'Automobile, popularmente conhecida como FIA), com sede em Paris, na França. Embora não haja nenhuma lei que diz que as mulheres devam ficar com as atividades domésticas e os homens devam ficar com as máquinas (com exceção da Arábia Saudita, onde as mulheres são proibidas de dirigir), o senso comum ainda mantém tal divisão, mesmo que pessoas tenham quebrado tais dicotomias ao longo da história. É por essas e outras que a Fórmula 1 é um esporte machista, ou melhor: praticado por machistas.
     Pelo fato de as convenções sociais afirmarem que o destino dos homens são as máquinas, a Fórmula 1 e demais esportes automobilísticos acabam sendo dominados esmagadoramente por homens e, quando a presença de homens é maioria em um espaço, o mesmo tende a ser machista. Muitos são os relatos e atitudes que mostram o machismo presente na Fórmula 1 e se todos fossem colocados aqui, seriam necessários muito mais de um post deste blog. Entretanto, um fato merece destaque. Em 2014, fez-se 20 anos que Ayrton Senna, o maior atleta brasileiro e um dos maiores pilotos de todos os tempos, faleceu. Programas de TV, sites, jornais e fãs lembraram as duas décadas da morte do piloto. As homenagens foram muitas. O 'Esporte Espetacular', programa dominical exibido pela Rede Globo de Televisão, exibiu a série 'Ayrton Senna do Brasil'. Familiares, amigos, pessoas que trabalharam com o Ayrton, comentaristas de Fórmula 1, pilotos que estavam em atividade quando ele faleceu e pilotos mais jovens que se inspiram em Ayrton Senna deram seus respectivos depoimentos. No segundo episódio desta mesma série, estavam comentando sobre as dificuldades em se pilotar um carro de Fórmula 1. Gerhard Berger, ex-piloto de Fórmula 1, disse: "Era um carro pra homem. Toda aquela potência, aqueles rodões e nada automático. Agora são mais carros pra moças. Era barra pesada". A fala de Gerhard mostra uma concepção de mulher enquanto ser frágil e ruim, ao passo que ser homem significa ser forte e viril. Não é preciso dizer que há fatos recentes e antigos que jogam por terra tal concepção.

Gerhard Berger e Ayrton Senna conversando. Para Berger, os antigos carros de Fórmula 1 eram carros "pra homem", ao passo que os carros atuais "são mais carros pra moças". Esta fala é retrógrada e tem incutida a concepção de que a mulher é o sexo frágil e ruim e o homem é o sexo forte e viril. Foto: gettyimages/Pascal Rondeau. 

     O machismo é um conceito que diz que cabe ao homem exercer o papel de liderança em todas as esferas da sociedade, públicas ou privadas. É este mesmo machismo que diz também que o homem é um ser forte, viril e dotado de inteligência; ao passo que a mulher é frágil e sem inteligência. Desta forma, segundo o machismo, tudo o que é associado ao sexo feminino é ruim. Com isso, se um homem é machista, com certeza ele também é homofóbico. Logo, a Fórmula 1 é um esporte praticado por machistas e também homofóbicos. Nelson Piquet, tricampeão mundial de  Fórmula 1, assim como Ayrton Senna (embora não seja tão lembrado quanto Senna), é conhecido por sua genialidade, por seu humor ácido e por não ser muito receptivo com relação a imprensa. Em 1988, Nelson Piquet era a estrela da Fórmula 1, mas não era educado com os jornalistas. O repórter Sérgio Rodrigues, do Jornal do Brasil, disse ao Ayrton Senna: "Você deu uma sumida". O piloto respondeu: "Bota aí que eu sumi para dar espaço para o Piquet. Afinal, não faz sentido o cara ser tricampeão e eu continuar sendo assunto. Já que ninguém gosta muito dele, o único jeito era eu sumir pra que ele pudesse aparecer um pouco. Eu não tenho nenhum título e todo mundo só fala de mim". O Jornal do Brasil mandou o repórter Eloir Maciel ouvir Nelson Piquet. O piloto deu a seguinte resposta: "Ah é, ele falou isso? Então, vai perguntar pra ele por que ele não gosta de mulher". Pronto. O falso boato de que Ayrton Senna era gay se espalhou. Mal sabia Nelson Piquet que Ayrton Senna conhecia "como mulher" a belga Catherine Valentim, então companheira de Piquet e mãe de Lazslo Piquet, o filho que o piloto teve com a belga.

Ayrton Senna e Nelson Piquet, rivalidade para além da Fórmula 1. A inimizade atingiu um ponto tão grande que Piquet não compareceu ao funeral de Senna, que emocionou o Brasil. Foto: Reprodução.

     Em 2009, veio a tona um escândalo que foi notícia dentro e fora da Fórmula 1. O piloto Nelsinho Piquet, filho de Nelson Piquet, confessou à FIA que no GP de Cingapura de 2008 bateu seu carro deliberadamente a fim de que Fernando Alonso fosse beneficiado. Flavio Briatore, então chefe da Renault, disse que não havia nada de errado na corrida em questão e não poupou ataques pessoais a Nelsinho, chamando o mesmo de "mimado", "frágil" e  insinuando que o mesmo fosse homossexual. "Ele me acusou de ter rompido uma relação com um amigo. Quem me pediu isso foi seu pai. Nelsinho vivia com este senhor. Não se sabe que tipo de relação eles tinham. O pai estava preocupado com a relação que seu filho tinha com este homem", disse Briatore. "Fiz com que ele se mudasse de Oxford para Londres, para o prédio onde eu moro, para mantê-lo sob controle", completou Flavio Briatore. Tal escândalo foi parar nas instâncias jurídicas e Flavio Briatore foi banido da Fórmula 1, ao passo que Nelsinho Piquet, que foi o autor da denúncia, não foi punido pela FIA.
     Se em 2009 Nelsinho Piquet teve a sua orientação sexual colocada em xeque, em 2013 o piloto cometeria ato semelhante com outra pessoa. O filho de Nelson Piquet fez um comentário em uma foto publicada por Parker Kligerman no Instagram no dia 25 de setembro de 2013. Em tom de deboche, Nelsinho postou (e depois deletou) um comentário em que insinua que Parker era gay. A organização da NASCAR recebeu reclamações sobre o ocorrido e Nelsinho Piquet teve de pagar uma multa de US$ 10 mil (na época, este valor equivalia a aproximadamente R$ 22 mil. Porém, com a alta do dólar e a correção monetária, este valor pode ser mais alto hoje em dia). Além disso, Nelsinho foi colocado em observação por tempo indeterminado. A NASCAR considerou a atitude de Piquet uma quebra do código de conduta estabelecido pela stock car norte-americana.
     Se hoje há espanto com relação ao fato de a Fórmula 1 ser um esporte praticado por machistas, imagina então como era a situação em fins dos anos 1980 e início dos  anos 1990. Pois é, foi neste contexto que o tricampeão mundial Ayrton Senna escolheu Betise Assumpção para ser sua assessora de imprensa. Ayrton foi o primeiro piloto de Fórmula 1 a ter um assessor, ou melhor: uma assessora de imprensa exclusivo. Betise Assumpção trabalhou com o piloto de 1990 até 1994, quando o piloto faleceu. Ser assessora de Ayrton Senna foi um aprendizado muito grande para Betise Assumpção, pois em 1990 Senna já era um piloto consagrado no Brasil e no exterior. Assessorar Senna foi sinônimo de aprendizado e status, uma vez que o piloto viajava para várias partes do mundo e a imprensa mundial olhava para Ayrton. Entretanto, nem tudo foram flores. Betise conta que no começo teve que domar Senna, pois a relação do mesmo com a imprensa não era das melhores e a mesma via o piloto "como um mimado, um terceiro mundista e que achava que podia fazer o que queria", lembrou Betise. Porém, com o tempo e graças sobretudo ao trabalho de Betise Assumpção, a relação de Ayrton Senna com a imprensa melhorou. Quando a Ayrton escolheu Betise, a mesma já era uma jornalista inteligente, experiente e gabaritada. Apta para o cargo, sem dúvida alguma. Não se pode julgar se Senna era machista ou não apenas no fato de Betise Assumpção ter trabalhado com o piloto. Para classificá-lo como tal, é necessário uma análise aprofundada e que sem dúvida não deve ser feita por um homem, mas sim por uma mulher. Entretanto, o fato de um piloto de Fórmula 1 ter uma mulher como assessora de imprensa não deixa de ser um fato curioso, pelo menos em 1990.

Betise Assumpção (à direita) ao lado de Kitty Balieiro (à esquerda) no estádio do Morumbi, na cidade de São Paulo. Kitty Balieiro foi a primeira mulher no jornalismo da TV Globo em São Paulo e Betise Assumpção foi assessora de imprensa de Ayrton Senna, o primeiro piloto de Fórmula 1 a ter uma assessora de imprensa exclusivo. Foto: Arquivo pessoal. 

     Mesmo a Fórmula 1 sendo um esporte praticado por machistas, a presença de mulheres neste ambiente esportivo é notória, seja pilotando carros ou não. Nos quase 66 anos de existência da Fórmula 1, as únicas mulheres a disputarem corridas foram Maria Teresa de Filippis (1958-1959) e Lella Lombardi (1974-1976), a única a ter marcado pontos. Outras três mulheres tentaram a sorte nos treinos, mas não conseguiram tempo para se classificar para a largada. Em 1992, a automobilista italiana Giovanna Amati participou de atividades em um fim de semana de corrida de Fórmula 1. Em 2014, Susie Wolf, então piloto de testes da Williams, faria a mesma coisa. Outras pilotos também foram contratadas por equipes de Fórmula 1 nesta década. Entretanto, estas ações foram mais parecidas com peças de marketing do que com iniciativas esportivas. Nenhuma destas mulheres estiveram próximas de correr. A espanhola María de Villota morreu em 2013, aos 33 anos de idade, pouco mais de um ano depois de um acidente durante um teste pela equipe Marussia. Este mesmo acidente custou a María o olho direito e sequelas que lhe tiraram a vida.
     Embora o sexismo esteja impregnado na Fórmula 1, a presença de mulheres nas equipes é cada vez maior. A britânica Lisa Lilley é gerente de tecnologia da Shell, fornecedora de combustível e lubrificantes da Ferrari. Lisa é PhD em engenharia química e trabalhou pela empresa holandesa dentro da Ferrari durante a primeira década dos anos 2000. Lisa Lilley sempre usou uniforme masculino, uma vez que não há uniformes para mulheres, com exceção daqueles usados pelas recepcionistas do time. Claire Williams é filha de Frank Williams, fundador da Williams. Atualmente, Claire Williams é quem comanda o time fundado pelo pai. Na Sauber, quem manda é Monisha Kaltenborn, que entrou no time em 2000 e chegou ao posto de chefe da equipe em 2012. Em janeiro deste ano, Susie Wolf, que também é esposa de Toto Wolf, chefe da Mercedes, lançou o projeto Dare to be Different (Ouse Ser Diferente), uma iniciativa com apoio da federação britânica de automobilismo que tem a finalidade de incentivar a entrada de mulheres em vários postos do esporte a motor, inclusive dentro dos carros.
     O piloto Felipe Massa reconhece que a Fórmula 1 é um esporte machista e vê a questão física como um entrave para a participação feminina no esporte. Partindo deste princípio, o piloto acha que deveria haver uma categoria feminina na Fórmula 1, algo que já existe no futebol, no tênis, no basquete e no vôlei. Entretanto, a questão é muito mais profunda do que uma mera categoria dentro de um esporte. É necessário rever esta  educação que diz que o homem deve trabalhar com máquinas e a mulher deve trabalhar com utensílios domésticos. A existência de uma categoria feminina na Fórmula 1 não é garantia de que o esporte deixará de ser machista. No futebol, por exemplo, existe a categoria feminina. Entretanto, esta mesma categoria não é tão popular quanto a categoria masculina e nem tanta visibilidade perante a sociedade. Isso sem contar que as mulheres que jogam futebol, mesmo sendo extremamente talentosas, não tem o mesmo status e a mesma fama que os homens. A Fórmula 1 não é um esporte machista: a Fórmula 1 é um esporte praticado por machistas. A F1 é um esporte como outro qualquer e tem o significado que as pessoas querem dar para ele. A questão é que a Fórmula 1 é um esporte praticado por homens e quando a presença dos mesmos é majoritária em um espaço, o mesmo tende a ser machista. 

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