22/05/2018

A problemática representatividade negra no casamento real

Príncipe Harry e Megan Markle (agora duque e duquesa de Sussex) desfilam em carro aberto pelas ruas de Windsor, Inglaterra, após cerimônia de casamento. Imagem: Gareth Fuller/Pool/Reuters. 

     No dia 19 de maio de 2018, o príncipe Harry e a ex-atriz Megan Markle subiram ao altar, se tornando o duque e a duquesa de Sussex respectivamente. Desde que Harry e Megan começaram a se relacionar e o fato se tornou público, a relação em questão deu (e ainda está dando) muito o que falar e isso se deve em parte ao fato de Megan ser negra. No local onde o casamento foi realizado havia uma grande quantidade de negros, levando negros e também integrantes de movimentos em prol da igualdade racial a comemorarem tal fato, dizendo que a população negra estava chegando a lugares que antes não chegavam. Entretanto, uma análise mais profunda revela que nem tudo é motivo para festa.

Wallis Simpson (1896 - 1986) ao lado de Eduardo VIII do Reino Unido (1894 - 1972). Eduardo VIII abdicou do trono britânico para se casar com Wallis porque na época a Igreja Anglicana não permitia o casamento com pessoas divorciadas. Imagem: Reprodução.

     Desde que Harry e Megan assumiram publicamente o relacionamento, o fato teve grande repercussão por conta do perfil de Megan, uma mulher negra, divorciada, três anos mais velha que Harry, independente e defensora dos direitos dos desfavorecidos. Este perfil vai contra aquele que ainda é o perfil de uma princesa: uma mulher submissa e independente. Em outras épocas, Megan não poderia se casar com Harry porque a Igreja Anglicana, cujo chefe é o monarca, não permitia o casamento onde um dos cônjuges é divorciado. Eduardo VIII do Reino Unido (1894 - 1972) teve que renunciar ao trono inglês para se casar com Wallis Simpson (1896 - 1986), uma mulher que havia se divorciado duas vezes até conhecer Eduardo VIII. Por conta disso, Jorge VI do Reino Unido (1895 - 1952), que até então vivia a sombra do irmão e cujas possibilidades de chegar ao trono eram remotas, se tornou rei. Assim, a atual rainha da Inglaterra Elizabeth II e a irmã, a princesa Margareth (1930 - 2002) subiram na linha de sucessão ao trono britânico. Aliás, a princesa Margareth foi impedida de casar com Peter Townsend (1914 - 1995) pelo fato dele ser divorciado. Ela poderia até se casar com ele, mas perderia os seus privilégios de princesa, bem como o seu lugar na linha de sucessão ao trono, inclusive seus descendentes. Como não queria perder seus privilégios, a princesa Margareth e Peter não se casaram. Um tempo depois, a irmã mais nova da rainha da Inglaterra se casou com Antony Armstrong-Jones (1930 - 2017) em maio de 1960. Entretanto, já tem algumas décadas que o divórcio é permitido pela Igreja Anglicana. A própria princesa Margareth se divorciou de Antony em 1978. Além disso, todos os filhos da rainha Elizabeth II, com exceção do príncipe Edward, são divorciados. 

O coral gospel The Kingdom Choir, composto por negros, emocionou a todos ao cantar Stand By Me, de Ben E. King (1938 - 2015). Imagem: Reprodução/Twitter

     Entretanto, o que chamou a atenção foi o fato de Megan ser negra. A cor da pele da agora Duquesa de Sussex rendeu muitas notícias, artigos, debates acalorados dentro de movimentos negros mundo afora e também ofensas raciais. As ofensas atingiram um grau tão alto que o príncipe Harry defendeu a amada publicamente. No tão esperado dia da cerimônia, muitos fatos chamaram a atenção e também algumas tradições foram quebradas. Porém, o que deu o que falar mesmo foi a grande quantidade de pessoas negras presentes na Capela de São Jorge, que fica no Castelo de Windsor, onde o enlace matrimonial foi realizado. Foi a primeira vez, até onde se sabe, que um número tão grande de negros marcaram presença no Castelo de Windsor. O coral gospel composto por negros The Kingdom Choir marcou presença e emocionou a todos quando se apresentaram na cerimônia. Destaque para Nathan Mcharo, um corista negro adolescente que integrou o coral que cantou no casamento real. E destaque também para o violoncelista negro de 19 anos Sheku Kanneh-Mason que tocou enquanto o príncipe Harry e Megan assinavam os documentos. Tem também o reverendo negro Michael Curry, que citou Martin Luther King (1929 - 1968) em seu sermão. Além disso, o reverendo defende o casamento gay e é um crítico ferrenho de Donald Trump, o atual presidente dos EUA. Não poderia deixar de citar Doria Ragland, mãe de Megan e que também é negra, cuja emoção durante a cerimônia era visível. E isso sem contar com as personalidades negras de relevância no cenário internacional, como por exemplo Oprah Winfrey, a rainha da televisão mundial e a tenista internacionalmente reconhecida Serena Williams. Por conta da grande quantidade de negros, muitos se sentiram representados e comemoraram porque havia negros em lugares onde até então não haviam. Porém, estava comemoração deve ser revista. 
     Harry e Megan podem se amar verdadeiramente, mas o casamento de ambos serviu também para aumentar a popularidade da coroa inglesa e adaptar a imagem da mesma aos novos tempos. Foi a união do útil ao agradável. A monarquia do Reino Unido existe desde 1066 e precisa a todo instante se atualizar aos novos tempos para se manter no poder. A liberação do casamento para os divorciados é um exemplo disso, bem como a exibição pela televisão da coroação de Elizabeth II e de todos os casamentos reais, cujo primeiro a ser televisionado foi o da princesa Margareth. A princesa Diana (1961 - 1997) deixou sua marca na monarquia do Reino Unido, aumentando a popularidade da mesma, quebrando tradições e trazendo inovações para a mesma. Da mesma forma, Megan Markle acabou de entrar para a família real inglesa e já entrou para a História ao deixar sua marca na coroa inglesa. Porém, falar de representatividade negra nesse contexto é algo problemático. Representatividade seria fazer parte da supremacia branca? Sim, pois a monarquia do Reino Unido fez a Revolução Industrial tendo o corpo negro como combustível. Além disso, tal monarquia foi uma das que mais se aproveitou da escravidão e da colonização. Cada centímetro do Palácio de Windsor, bem como a louça usada durante as refeições, os bancos e as roupas têm o sangue negro. Se isso não for supremacia branca, eu não sei o que é. O que houve não é representatividade e muito menos integração. Representatividade negra é quando o negro pode livremente viver sem ter de esconder suas características e origens. Além disso, não pode haver integração sem reintegração e se a reintegração ocorresse, os membros da família real em questão não teriam nem o que vestir, uma vez que a riqueza obtida é fruto da exploração sistemática do continente africano e do corpo negro. É como se ladrões e assassinos invadissem a sua casa, roubassem seus filhos, estuprassem sua esposa, te sequestrassem, te escravizassem, matassem suas crianças e torturassem os mais velhos. E depois de algumas gerações esse ladrão volte rico (graças a tudo o que ele roubou) e se casa com uma de suas descendentes. Foi isso o que a coroa inglesa fez na África e o Harry representa o ladrão que após gerações retorna rico e se casa com uma descendente dos explorados, que no caso é a Megan. O príncipe Harry pode não ter participação na escravidão e exploração do continente africano, mas sem dúvida a sua riqueza e os seus privilégios foram construídos em cima dos corpos negros. 

Casamento da princesa Ruth Komuntale do Toro Kingdom, reino tradicional que fica nas fronteiras de Uganda, na África, em 2012. Imagem: Reprodução. 

     Provavelmente, os negros que se sentiram representados pela presença de Megan em uma família real desconhecem o fato de que na África há muitos países que vivem em uma monarquia. Lesoto, Marrocos, Suazilândia, Zululândia, Ashanti (Gana), Buganda (Uganda), Toro Kingdom (Uganda), Kano (Nigéria) e Godenu (Gana) são regiões da África, continente cuja população é majoritariamente negra, onde há monarquias. Entretanto, pouco ou nada se falam sobre as mesmas. Em 2012, a princesa Ruth Komuntale do Toro Kingdom, reino tradicional que fica na região fronteiriça de Uganda, se casou. Não foi um casamento televisionado para o mundo inteiro, os programas de celebridades não falaram sobre a cerimônia, não houve hashtags no Twitter (se teve, com certeza, as mesmas não estiveram em primeiro lugar em todo o mundo) e não houve negros na televisão falando de representatividade. Em 2016, um terreiro situado na Baixada Fluminense, mais precisamente em Santa Cruz da Serra, Caxias, no estado do Rio de Janeiro, recebeu a princesa nigeriana Arewa Folashade Adeyemi, da família real de Oyo. O objetivo da princesa era conhecer uma casa de santo histórica que está há mais de 50 anos na cidade. A repercussão do fato não foi grande. Soube pelas redes sociais que vários membros da família real iorubana estão no Brasil ou a caminho. Está entre eles Iya Adedoyin Olosun, princesa de Osogbo, sacerdotiza do culto de Osun. No próximo mês, estará no país Òóni de Ilé-Ifè e a Bahia será decretada por ele a capital iorubana das Américas. Na comitiva, estarão presentes também Wande Abimbola e Wole Soyinka. O primeiro é um acadêmico nigeriano que já atuou como senador na Nigéria e o segundo é um escritor também nigeriano que ganhou o Nobel de Literatura em 1986. Não se vê empoderados se alvoroçando pela vinda da família real em questão ao Brasil. A pessoa enxerga representatividade em uma mulher negra que se casou com um membro da família real que mais lucrou com o tráfico de escravos (e que até hoje explora as populações africanas), mas não vê representatividade em muitas dinastias da África. 

Conclusão

     O casamento de Harry e Megan é uma estratégia da monarquia do Reino Unido para aumentar a popularidade e se manter no poder. Todo o luxo e os privilégios desta monarquia foram feitos em cima da exploração da população negra, bem como da exploração das riquezas da África. Representatividade negra não é quando um negro faz parte da supremacia branca e incorpora a estrutura racial. Representatividade negra é quando o negro vive livremente sem ter vergonha de sua origens, suas características e livre do racismo, uma das estruturas do mundo ocidental onde o homem branco é colocado no centro de tudo e a população negra é posta à margem. 

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