Ilustração acerca da multiplicação dos pães e peixes, uma das passagens mais conhecidas da Bíblia. Este fato mostra que Jesus não se preocupou somente com a alma do ser humano, mas também com o corpo do mesmo. Imagem: Reprodução.
Os primeiros seguidores de Cristo viveram a máxima do amor ao próximo e em nome deste mesmo amor compartilhavam tudo entre si para que ninguém passasse necessidade. O tempo passou, o número de seguidores de Jesus aumentou e a prática do bem comum foi praticamente abandonada. É neste momento que entra a espiritualidade, usada por alguns ditos cristãos para camuflar as desigualdades sociais.
Conforme a Bíblia relata no livro de Atos dos Apóstolos, os primeiros seguidores de Jesus compartilhavam do bem comum: os mais abastados ajudavam os mais necessitados. Porém, o tempo foi passando e o número de seguidores de Cristo aumentando. Com isso, a ideia do bem comum foi sendo deixada de lado. Em Socialismo e as igrejas (1905), Rosa Luxemburgo (1871 - 1915) analisa o modo como a Igreja deixa de ser simples e passa a ser grandiosa, influenciando a política de uma sociedade. Neste mesmo livro, Rosa afirma também que o fato de o cristianismo ter deixado de ser uma religião humilde e composta por pessoas também humildes para se transformar em um grandioso e influente império; fez com que a religião cristã deixasse para trás a ideia do bem comum e a substituísse por uma postura conivente com a exploração dos mais pobres. Rosa Luxemburgo (1871 - 1915) destaca também que o número de cristãos que pregavam o bem comum passou a ser muito pequeno.
Mesmo tenso sido publicado pela primeira vez em 1905, a obra Socialismo e as igrejas não perde a sua atualidade. Em tal livro, Rosa Luxemburgo (1871 - 1915) analisa a Igreja Católica, mas o mesmo livro serve perfeitamente para se compreender o protestantismo atual no Brasil. Igrejas cujos membros vivem na pobreza têm templos extremamente luxuosos, com direito a telão, estacionamento e até equipe de filmagem para transmitir as reuniões ao vivo pela internet da melhor forma possível. Pastores extorquem os fiéis com a justificativa de financiar infinitas campanhas e projetos sociais. Muita gente aceita esta situação porque acreditam que serão exaltadas e enriquecerão. É a chamada Teologia da Prosperidade, incompatível com os ensinamentos de Jesus e com o pensamento político de esquerda. Isso explica em parte a razão de tantos cristãos serem de direita. Voltando a falar dos pastores que extorquem as suas ovelhas, os mesmos costumam morar em bairros nobres, têm casas, fazendas, motoristas particulares e até helicópteros. Alguns cantores gospel seguem a mesma linha: cobram cachês absurdos para irem cantar, só aceitam hotel 5 estrelas, exigem em seus camarins frutas da estação, água e toalhas brancas. Estes mesmos cantores moram em bairros nobres e costumam viajar para o exterior com frequência.
Evo Morales, presidente da Bolívia, presenteia o Papa Francisco com um crucifixo no formato de foi e martelo, símbolo do comunismo. Cristo e as doutrinas sociais de esquerda combinam? Imagem: Observatore Romano/Reuters.
A relação da Igreja com as doutrinas sociais de esquerda nunca foi das mais amigáveis. A Igreja já disse que os comunistas comem crianças, invadem propriedades e até impedem os cristãos de exercerem a sua religiosidade. Há aqueles que dizem também que o comunismo já matou mais do que todas as catástrofes naturais e não-naturais que o mundo já viu. Por mais absurdas que possam parecer (e de fato são), há muitas pessoas, inclusive cristãs, que acreditam nas mesmas. Além de usarem tais argumentos contra militantes de esquerda, alguns cristãos, na tentativa de desmerecer os mesmos, usam o argumento da espiritualidade.
Antes de dar continuidade a este assunto, convém lembrar que nem todo aquele que luta pela justiça social é de fato de esquerda. Dando continuidade ao texto, muitos cristãos usam como argumento para criticar as doutrinas sociais de esquerda (comunismo, socialismo e anarquismo por exemplo) e também a Teologia da Libertação (corrente teológica cristã nascida na América Latina que diz que o Evangelho deve ficar ao lado dos pobres e defender os mesmos) o suposto fato de que tais tiram o foco principal da mensagem de Cristo: a salvação do homem. Entretanto, se analisadas as visões político-ideológicas destas pessoas, as mesmas em sua grande maioria apoiam políticos que legitimam a desigualdade social e destroem o Meio Ambiente por exemplo. É a revisitação da concepção de que a pobreza é um desejo divino e que cabe ao pobre se conformar com a mesma.
Pessoas marchando contra a LGBTfobia. É justamente pelo fato de Jesus ter me ensinado a amar o próximo que o combate a LGBTfobia é uma das minhas bandeiras políticas. Imagem: Paulo Whitaker/Reuteurs
Durante muito tempo eu separava o que era espiritual e o que não era. Hoje eu não faço mais isso, pois acredito que glorificar a Deus não se limita a execução de atividades religiosas. Frequentei a Assembleia de Deus (veja aqui) por mais de dez anos e algo que me chamava a atenção era que alguns líderes não incentivavam os liderados de forma contundente a estudar mais, ler mais e buscar um aperfeiçoamento profissional por exemplo. Uma coisa que aprendi foi que Jesus não faz nada pela metade. NADA. Se a pessoa estiver com problemas psicológicos, Jesus vai tratar nesta área (isso não significa que a pessoa não deva procurar um psicólogo, pelo contrário); se a pessoa estiver com problemas na vida sentimental, Jesus vai tratar nesta área; e se a pessoa tiver alguma enfermidade no corpo, Jesus vai tratar nesta área também (isso não significa que a pessoa não deve buscar ajuda médica, muito pelo contrário). Vou citar outra coisa para vocês onde eu vou mostrar que a separação entre o espiritual e o não-espiritual não é tão clara assim, se é que essa separação de fato existe. Jesus falou para amarmos o nosso próximo como a nós mesmos (Mateus 22: 39) e é em nome desse amor que eu luto para combater a pobreza, a desigualdade de gênero, contra a LGBTfobia e contra o racismo. Uma coisa que me chama a atenção é o fato de a maioria das denominações cristãs colocarem Jesus como uma pessoa completamente indiferente às questões político-sociais de sua época. Uma leitura atenta dos Evangelhos mostra exatamente o contrário. Além disso, o escritor Reza Aslan analisa o assunto de modo magistral no livro Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré (2013).
Muitos negam, mas o fato é que a concepção de que política não é algo para cristão ainda é forte dentro da crença cristã. Desenvolvi e aperfeiçoei (ainda estou aperfeiçoando, é um processo contínuo) minha veia política quando frequentava a Assembleia de Deus. Eles não falavam, mas meus posts politizados nas redes sociais incomodavam os cristãos mais conservadores. Eles me cobravam de forma indireta posts religiosos e dependendo deles eu não colocaria outra coisa em minhas redes sociais. Eu só escrevo tais mensagens quando me dá vontade e quando não dá vontade, eu não escrevo. E assim a vida segue.
Acredito que somos forasteiros e peregrinos neste mundo (2 Pe 2: 11), mas isso não significa que eu seja indiferente às coisas deste mundo. É como uma pessoa que mora de aluguel, realidade de tantos brasileiros. A casa não é sua e uma hora você vai ter que sair de lá, mas enquanto você estiver lá, é sua obrigação lavar o banheiro, passar uma cera no chão e tirar a poeira da casa. A relação com o mundo é a mesma coisa: enquanto estivermos neste mundo, que cuidemos das coisas deste mundo, lutando por uma sociedade justa e igualitária.
Conclusão
A (falsa) espiritualidade é usada para mascarar as desigualdades sociais. Na prática, a separação entre o que é espiritual e o que não é não é muito definida. Além disso, um Evangelho que não é comprometido com a totalidade do homem e com as causas sociais é um Evangelho pela metade.
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01/02/2019
Espiritualidade: uma arma usada por alguns cristãos para camuflar problemas sociais
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