30/08/2018

Entrevista com Tereza Crispim Esperotto

Tereza Crispim Esperotto. Imagem: Arquivo pessoal.

     A entrevistada do mês de agosto do blog é Tereza Crispim Esperotto, uma empregada doméstica aposentada que mora no Morro do São Carlos, na cidade do Rio de Janeiro. Ela é tia de Tiago Crispim Salvador (o sobrenome Crispim revela o parentesco), o entrevistado do mês de julho aqui do blog. Aliás, foi o Tiago quem falou de mim para ela e vice-versa e, com isso, D. Tereza manifestou grande interesse em ser entrevistada por mim.
      O Dia do Historiador é 19 de agosto e, pensando nessa data, além ter feito uma lista com os maiores historiadores da atualidade, eu resolvi também fazer uma entrevista com D. Tereza cujo tema é a História, mais precisamente a micro-história, que é quando a História não é contada pelos livros, mas sim a partir de um indivíduo que presenciou um acontecimento. D. Tereza não é nenhuma acadêmica e nem gosta muito de ficar lendo (ela prefere atividades que a façam se movimentar), mas isso não impede que, através de sua fala, as práticas sociais sejam examinadas. Por meio das respostas simples de D. Tereza, é possível analisar a influência que o rádio tinha na sociedade, a chegada e a popularização da televisão no Brasil, o modo como alguns crimes que choraram o país ficaram na memória de algumas pessoas, as diferentes reações da sociedade ao Golpe Civil-Militar de 1964, bem como os preconceitos sociais e raciais que D. Tereza sofreu ao longo da vida. Cada entrevista para mim é especial e esta não é diferente. Confira:

A Hora: 1 - Costumo iniciar minhas entrevistas perguntando sobre a infância da pessoa entrevistada. A senhora pode me falar como foi a sua?

Tereza Crispim Esperotto: Difícil, muito difícil. Eu não podia ir à escola porque ele achava que a gente não precisava aprender a ler e a escrever. E essa era a minha paixão. Depois, ele começou a fazer assim: se eu fizesse os trabalhos de casa, eu ia ao colégio e se não fizesse, eu não ia. E era só aos domingos, que era quando uma senhora saía de Copacabana e ia dar aulas lá no sítio. Primeiro eu tinha que pegar a água, encher tudo, pegar lenha na mata e depois de tudo feito, eu estava liberada para assistir às aulas. Essa fazenda ficava perto do Km 32, em Nova Iguaçu (RJ), e o meu pai quem era o caseiro. Aí eu cresci e sempre trabalhei como doméstica. O meu patrão me colocou para estudar em um colégio muito chique, o Colégio São Paulo, que funcionava em Copacabana (o atual endereço é a Avenida Vieira Souto, em Ipanema). Era um colégio particular e eu estudava à noite e quem dava aulas eram as freiras. 

AH: 2 - Quando a senhora chegou ao Morro do São Carlos?

TCE: No dia 28 de julho fez 54 anos que eu cheguei ao Morro do São Carlos. O morro era assim: o caminho era terra e as escadas eram feitas no barranco. Eu tenho quase certeza que o meu primeiro filho nasceu morto porque eu pisei em um barranco e o barranco desceu comigo. O meu marido na frente e eu atrás e quando ele olhou, eu estava estatelada no chão. Eu estava com quase nove meses de gestação e o meu bebê nasceu morto. Era uma época muito complicada porque não tinha água encanada e a gente tinha que descer e subir com bacias de roupa para lavar e baldes de água. As kombis não chegavam até aqui e quando a gente ia fazer compras, tinha que subir o morro carregando os pacotes. Na verdade, as kombis só chegaram muito tempo depois e não era nem kombi, eram uns carros antigos que a gente nem vê mais na rua. As motos (mototáxi) vieram muito, muito tempo depois, por volta dos anos 2000. Começaram com duas, três e agora passa um monte de motos pelo morro. Eu não gosto de moto, só ando em uma em último caso, como quando, tarde da noite, eu voltava com minha neta de Angra dos Reis e estávamos cansadas demais para subir todo o morro a pé [1]. Subimos de moto. Além disso, desde que a minha sobrinha e o filho dela se envolveram em um grave acidente quando andavam de moto no Túnel Santa Bárbara, eu tenho um medo ainda maior de moto. O menino sofreu ferimentos leves, mas a minha sobrinha não. Ela voou por cima dele, desmaiou e quando recobrou os sentidos, estava longe do local onde a moto estava caída. Ela se machucou bastante, ainda não se recuperou completamente e está encostada pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

AH: 3 - O Tiago comentou comigo que a senhora ouvia as narrações no rádio sobre o Crime do Sacopã [2]. O que os radialistas diziam sobre?

TCE: Era um crime cuja autoria nunca foi descoberta, mas o que eu me lembro mais é o da Aída Curi. 

AH: 4 - O rádio onde a senhora ouvia sobre tal crime era do patrão da casa onde trabalhava. Ele a deixava ouvir rádio?

TCE: A partir dos 16 anos, eu tinha permissão para o ouvir rádio, mas quando eu era ainda mais nova e morava no interior, eu não tinha permissão para isso. Eu trabalhava para uma família que era da nossa cor (negros), mas o menino dizia assim: "Não, empregada não pode ouvir rádio". Ele trancava a porta da sala e eu ficava na cozinha ouvindo o rádio pelas brechas que tinham e ouvia Jerônimo, o Herói do Sertão (1953) [3], eu amava. Comecei a trabalhar como doméstica quando tinha uns 7 anos de idade, tomando conta de crianças e nesta profissão permaneci até me aposentar, em 2002. 

AH: 5 - O rádio era muito popular, mas ao mesmo tempo, por conta do alto preço, não era acessível para todo mundo. Como a senhora fazia para ouvir rádio?

TCE: Quando eu vim para Copacabana, o tratamento mudou, era completamente diferente, apesar de eu ser uma empregada doméstica. Eu passei a trabalhar para um almirante da Marinha e ele era muito humano. Então, ele escrevia o número do ônibus para mim, escrevia meu nome e me mandava cobrir e à noite ele me fazia ir para a escola. Como eu ia chegar tarde, ele pedia que eu preparasse a janta deles antes de ir estudar. Então, eles (o almirante e sua família) me acolheram muito bem e me deixavam ouvir rádio (risos).

AH: 6 - Um fato que fiquei sabendo que a senhora conta muito é que certa feita pegou uma barca rumo à Niterói onde Dalva de Oliveira (1917 - 1972) [4] estava presente. Como foi essa viagem?

TCE: Na verdade, eu peguei a barca de Niterói para o Rio de Janeiro. Foi uma viagem normal, antigamente não era como hoje, que a pessoa vê um cantor e vai em cima dele. A gente ficou admirado de ver ela ali falando com todo mundo, inclusive comigo. Eu estava com os filhos dos patrões, pois eu cuidava deles. Me lembro até hoje da roupa que ela usava nesse dia. Ela usava uma calça preta, blusa verde e o penteado dela era uma trança com uma fita na ponta. Estava ela e o marido dela na época, o Herivelto Martins (1912 - 1992) [5]. A Dalva estava com um menino bem pequeno no colo, mas eu não me lembro se era o Pery Ribeiro (1937 - 2012) [6] ou o outro, o Ubiratan Oliveira Martins. Eu não me lembro, eles eram garotos. 

AH: 7 - E quando a televisão chegou. Como a senhora fazia para ver TV e quando teve a sua?

TCE: Eu ainda peguei a época da televisão em preto e branco e assistia TV na casa dos patrões. Eu gostava das novelas Sangue e Areia (1968) e Rosa Rebelde (1969), ambas com Tarcísio Meira, mas pena que esqueci o nome de algumas outras novelas. Depois veio a TV a cores.

AH: 8 - A senhora conta que viu o corpo de Aída Curi (1939 - 1958) [7] no chão, em Copacabana, depois da execução do crime. Quais as lembranças que a senhora tem desse dia e do crime em si?

TCE: Na verdade, não deu para a gente ver muita coisa porque tinha muita gente ao redor e jogaram um pano por cima do corpo dela. Ninguém viu muita coisa ali não. A gente só viu aquele movimento e a gente perguntando um e outro o que estava acontecendo e eles falaram: "uma moça foi jogada do prédio". Este fato era noticiado com frequência, até que descobriram que foi o Ronaldo Castro (um dos envolvidos no crime) que matou ela, mas ele era filho de gente muito rica e por conta disso não deu muita coisa para ele (Ronaldo foi absolvido da acusação de homicídio, sendo condenado somente por atentato violento ao pudor e tentativa de estupro). Contei o que vi para minha família quando cheguei em casa e não demorou muito tempo e as rádios começaram a noticiar o crime. Depois vim saber quem era ela e os homens  que a mataram. O crime era mais falado no rádio do que na televisão porque na época a TV não era muito popular, quase ninguém tinha acesso e ela era muito nova no país.

AH: 9 - Em 1964, o Brasil entrou em uma ditadura da qual só sairia em 1985. Onde a senhora estava quando a ditadura foi implantada e qual foi a reação das pessoas?

TCE: Eu estava trabalhando na Avenida Rainha Elisabeth, em Copacabana. Foi assim: quando botaram o presidente para fora do Brasil (João Goulart, que foi deposto e morreu no exílio), eu e uma amiga minha fomos comprar leite porque tudo estava fechando, as pessoas estavam com medo. No Forte de Copacabana, as pessoas que eram contra e a favor andavam para lá e para cá, mas tinha mais gente que era a favor da expulsão do João Goulart do Brasil do que contra. Eu e mais uma amiga que estava desempregada (o meu patrão deixou ela ficar comigo me ajudando até ela encontrar um emprego) estávamos entrando no prédio, passou um monte de playboy naqueles carros de luxo, olharam pra gente e falaram: "Ih, elas não estão satisfeitas". Eles arrasaram com a gente, teve um que até desceu do carro para nos agredir, mas o porteiro veio e empurrou a porta para não deixar ele bater na gente. Eles queriam que a gente comemorasse junto com ele. Deram tiros de canhão no Forte de Copacabana. Quando subi para o prédio da minha patroa, ela explicou que quando o avião com João Goulart decolou, os militares deram tiros de canhão comemorando a saída dele porque ele não era militar.
Me lembro também de uma história engraçada durante a ditadura. Eu não sabia o que era comunismo e quando falavam disso, diziam que os ricos tinham que dar tudo o que tinham para os pobres e eu, na minha cabeça, ignorante (risos), falei com minha amiga: "Ih, Dorca. É bom mesmo o comunismo porque esses ricos vão ter que dar todo o dinheiro deles pra gente". Aí, o cara que trabalhava no estabelecimento onde eu estava com essa amiga falou: "Cala essa boca, sai daqui, porque se não a família de vocês nunca mais verão vocês e não volta aqui mais não". Aí, eu cheguei na casa do meu patrão, contei o que houve e ele disse: "como é que você foi falar uma coisa dessas?" e falou também: "Eu proíbo você de comprar leite no Mercadinho Azul [8], não vai mais lá". 

AH: 10 - O esposo da senhora, falecido em 1997, era descendente de italianos. O que ele contava sobre a família dele? Mais especificamente falando, sobre a chegada e permanência no Brasil?

TCE: Meu marido não costumava falar com a família dele por causa da minha cor. Ele não gostava de comentar muita coisa não porque eles eram, não se ainda são (os mais novos são diferentes), muito racistas, principalmente a mãe dele. Quando eu estava esperando o meu primeiro filho, que nasceu morto, um primo do meu marido veio aqui em casa buscar uns documentos do meu marido porque o meu esposo veio para servir o Exército, ele ia até para a Guerra de Suez [9], mas acabou não indo. E esse primo do meu falecido esposo voltou e contou que eu estava grávida e a mãe dele disse que ia nascer um sangue podre na família. Isso gerou uma revolta muito grande em meu marido. Ele chegou até a ficar sem falar com a mãe, mas ela não tinha culpa no fato de o nosso filho ter nascido morto. Meu falecido marido enfrentou a família dele para casar comigo e chegou até a ficar sem falar com eles. Eu quem sempre insistia para ele manter contato com a família dele porque, apesar de tudo, eram os pais dele.
Meu marido saiu da região sul do Brasil com 18 anos para servir ao exército no Rio de Janeiro. Ele era bem alto e forte e os militares gostavam de gente assim para servir. Como não tinha família na cidade, ele morava no quartel e quando saiu, passou por muitas necessidades porque ele dizia que não voltava para a casa dos pais. Conheci meu marido quando ele trabalhava em uma loja na Avenida Copacabana, no Caju. Eu tinha ido lá ver umas coisas para comprar e lá tinha uma liquidação de máquina de costura. A minha patroa havia pedido para eu ir lá e ver uma que me agradasse, que ela iria comprar para mim. Porém, as máquinas de costura tinham acabado e ele pegou o número do telefone do meu trabalho para ligar quando as máquinas de costura chegassem. E nessa, ele ficava ligando a toa para o meu trabalho (risos) e no fim, as máquinas de costura não chegaram e eu já nem pensava mais nisso. Às vezes, eu ia à Avenida Copacabana e encontrava ele fazendo entrega. Fomos conversando, conversando e no fim nos casamos. Meu marido era uma pessoa maravilhosa, todos da minha família gostavam dele.

Jornal onde aparece a propaganda que o esposo de D. Tereza participou. A foto dele é a do canto inferior direito. Imagem: Arquivo pessoal. 


AH: 11 - Soube que seu falecido marido chegou a participar de um comercial. Que comercial foi esse?

TCE: Foi um comercial da Brastel [10]. Uma empresa que fazia filmagens foi no bairro de Usina ver os funcionários e dentre todos, o pessoal desta empresa gostou do meu marido. A gravação deste comercial foi no Recreio dos Bandeirantes e o meu marido estava com um certo receio porque até então ele nunca tinha participado de um comercial na vida dele. Meu esposo contava que eles gravavam várias vezes e ele tinha que ir e voltar com o caminhão o tempo todo, até que ficou bom. Ele ficou de saco cheio (risos). Esse comercial passou na televisão durante anos. Para onde a gente ia, as pessoas pensavam que meu marido era um artista. 


Esposo de D. Tereza em comercial de jornal. Imagem: Arquivo pessoal. 

AH: 12 - Em História, o que a senhora gosta de estudar?

TCE: Eu não tenho mais muita paciência para ficar lendo não (risos). Sou mais de ficar fazendo as coisas de casa: vou lá fora e limpo o quintal por exemplo. Gosto de atividades que eu me movimente, coisas para eu ficar parada... 

AH: 13 - D. Teresa, foi um prazer imenso entrevistar a senhora. Agora, eu só te peço uma última coisa: a senhora pode deixar uma mensagem para os leitores do blog A Hora?

TCE: Tudo isso que estou contando é real, aconteceu no passado comigo e com familiares meus. Nada aí é inventado. 

Notas:

1 - O Morro do São Carlos é extremamente alto. Para vocês terem uma noção de sua magnitude, do alto deste morro é possível ver a Baía de Guanabara, a Ponte Rio-Niterói, a Igreja da Candelária, os Arcos da Lapa, a Catedral Metropolitana, o Edifício Sede da Petrobrás, a Fiocruz, a Igreja da Penha e o Aeroporto Internacional Tom Jobim, que fica na Ilha do Governador;

2 - É como ficou conhecido o homicídio do bancário Afrânio Arsênio de Lemos, ocorrido no Rio de Janeiro no dia 06 de abril de 1952. O crime recebeu a atenção da imprensa por muitos anos e a autoria do mesmo nunca foi descoberta. O crime recebeu esse nome porque ocorreu na ladeira do Sacopã, nas imediações da Lagoa Rodrigo de Freitas, bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil;

3 - Foi uma radionovela brasileira ambientada no nordeste brasileiro de muito sucesso e que tinha a influência do faroeste norte-americano. Foi criada por Moysés Weltman para a Rádio Nacional e ficou no ar por 14 anos;

4 - Era o nome artístico de Vicentina de Paula Oliveira. Dalva é considerada até hoje uma das mais importantes cantoras do Brasil, fato que lhe rendeu os epítetos de Rainha da Voz e Rouxinol do Brasil. Sua extensão vocal ia do contralto ao soprano.Gravou cerca de 14 álbuns de estúdio e lançou dezenas de sucessos, como Brasil (1939), Segredo (1947), Fim de Comédia (1952), Máscara Negra (1967) e Bandeira Branca (1970) por exemplo;

5 - Foi um grande compositor, cantor e músico brasileiro. Sua obra é considerada uma das mais importantes da MPB. Gravou discos com o grupo Trio de Ouro e também individuais. Foi casado com Dalva de Oliveira, com quem teve os filhos Pery Ribeiro (também cantor) e Ubiratan Oliveira Martins;

6 - É o nome artístico de Peri Oliveira Martins, cantor e compositor brasileiro. Lançou cerca de 32 álbuns e ganhou dezenas de prêmios e troféus. Foi eleito em 2012 pela revista Rolling Stone Brasil o 64º dos 100 melhores cantores do Brasil;

7 - Era uma jovem brasileira de ascendência síria que foi assassinada no dia 14 de julho de 1958. Três rapazes tentaram estuprar Aída, que lutou contra os três e foi agredida violentamente por causa disso. Por conta do cansaço físico, Aída desmaiou e os três rapazes, na tentativa de simular um suicídio, a jogaram do topo do Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro;

8 - Era um mercado tradicional que funcionava no bairro de Copacabana e que fechou suas portas;

9 - Também conhecida como Crise de Suez ou Guerra do Sinai, foi uma crise política que começou no dia 29 de outubro de 1956, quando Israel, com o apoio da França e do Reino Unido, que usavam o canal para ter acesso ao comércio oriental, declarou guerra ao Egito. O Brasil teve participação no conflito ao mandar para a região, o Oriente Médio, 20 contingentes do Exército Brasileiro que ficaram conhecidos como Batalhão Suez;

10 - Foi uma empresa de eletrodomésticos brasileira fundada no começo da década de 1970 e que faliria alguns anos depois. O fundador, Assim Paim Cunha, morreu no dia 22 de outubro de 2008 na pobreza. 

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