24/07/2018

Racismo na Igreja: algo muito mais comum do que podemos imaginar

Pintura representando o episódio bíblico conhecido como "Santa Ceia", que ocorreu momentos antes de Jesus ser traído por Judas e posteriormente crucificado. Há fortes evidências de que Jesus era negro. Créditos na imagem.

     Jesus, a figura central do cristianismo, disse para que amássemos o nosso próximo incondicionalmente. Partindo dessa premissa, o racismo é algo inconcebível para um cristão. Entretanto, diante de evidências históricas e experiências pessoais, se percebe que o racismo é uma realidade dentro da Igreja. Estou usando Igreja com "i" maiúsculo porque neste texto eu não me refiro a uma corrente e/ou denominação específica do cristianismo, mas sim às muitas vertentes que existem dentro da religião cristã.
     Embora não tenha o seu devido valor reconhecido, a História é um curso que dá base para vários outros cursos, inclusive para aqueles que não são da área de ciências humanas. Desta forma, para entender o racismo dentro da Igreja, vamos fazer uma volta no tempo. A Igreja Católica esteve ao lado do Estado na colonização das Américas Hispânica e Portuguesa e também na escravização e colonização do continente africano. Com o argumento de trazer a "salvação aos perdidos", a Igreja endossou o discurso do colonizador. No caso dos negros que foram escravizados, a Igreja disse que os mesmos deveriam passar por esta situação para que fossem redimidos de seus pecados e até a teologia foi usada para justificar a escravidão. Acreditavam (ainda há quem acredite, por incrível que pareça) que os moradores do continente africano eram descendentes de Cam, o filho de Noé que ao ver o pai bêbado e nu, zombou do mesmo. Ao recuperar a sobriedade, Noé amaldiçoou a descendência de Cam. Estes descendentes seriam aqueles que mais tarde habitariam a África, continente marcado pela servidão e miséria extrema. Somado este fato às religiões de matriz africana, muita gente acredita que a África convive com tamanha miséria por conta de seu "misticismo". Não, não e não. A África não é um continente pobre por conta de sua religiosidade, mas sim por causa da exploração secular e sistemática de seus vastos recursos naturais.

A Princesa Isabel (1846 - 1921) abraçou com fervor a causa abolicionista. Entrou para a história por ter abolido a escravidão no Brasil. Imagem: Joaquim José Insley Pacheco (1830 - 1912) .

     Se antes, a Igreja apoiava a escravidão, já no século XIX, mais especificamente na segunda metade do mesmo, a mesma vai ser fervorosamente a favor da abolição da escravatura. A princesa Isabel (1846 - 1921), cuja religiosidade era conhecida, abraçou com ardor a causa da abolição. Ela acolheu e alimentou escravos fugitivos em seu palácio e criou campanhas com o objetivo de levantar fundos para a compra de alforrias por exemplo. A motivação da princesa cresceu a partir de 1887, quando o episcopado brasileiro, afinado com as orientações papais, promoveu intensa campanha abolicionista. Os bispos católicos do Brasil convocaram os católicos do país a promoverem a libertação dos escravos. Como católica praticante, D. Isabel atendeu ao clamor da igreja católica no Brasil. Assim, após uma "queda de braço" que envolveu a demissão do Gabinete Cotegipe (1815 - 1889), a Lei Áurea foi assinada em 1888 pela princesa Isabel, que era princesa regente, uma vez que D. Pedro II (1825 - 1891) estava afastado de suas funções por motivos de saúde. Dias depois, ainda como princesa regente, ajudou a organizar uma grande missa campal em agradecimento pelo fim da escravidão. A abolição da escravatura foi o golpe final no Império do Brasil, que na época da abolição da escravatura já se mostrava cambaleante, chegando ao fim em 1889.
     A escravidão acabou, mas a estrutura escravista que até hoje sustenta a sociedade brasileira não. Além disso, a Igreja tende a absorver os discursos de sua época das mais diferentes formas porque a mesma é um produto de seu tempo. Dadas estas observações, é possível afirmar que o racismo é uma realidade em muitas igrejas brasileiras. Frequentei a Assembleia de Deus por muitos anos e vi alguns casos de racismo na mesma. Quando tinha por volta de 13, 14 anos de idade, eu era integrante do conjunto de adolescentes na época quando um menino de pele retinta passou a fazer parte do conjunto. Os demais adolescentes, assim como as crianças, chamavam o mesmo de macaco. A liderança pouco fazia diante do fato. Outro caso que me recordo é de um homem que entrou para o conjunto de novos convertidos. Ele não tem alguns dentes, não fala corretamente e é negro. Por conta disso, os membros da igreja não o cumprimentavam com a "paz do Senhor" quando o viam na rua. A situação chegou em um ponto tão extremo que o pastor teve que intervir, repreendendo os demais membros durante um culto. É fato que atualmente as Assembleias de Deus mudaram bastante, mas eu me questionava porque que o cabelo black é sinônimo de "bagunça" e que até as mulheres deveriam manter os mesmos presos em um coque (em uma AD tradicional, não é permitido ao homem ter cabelos longos). Quando assumi os meus cachos, eu ainda frequentava a AD e eu lembro de ter ouvido muitas "piadas" dos "irmãos" por conta do meu novo estilo. E o pior de tudo isso é o fato de a existência do racismo não ser reconhecida dentro desta igreja. Me lembro que quando comentei em minha conta pessoal no Facebook que a Assembleia de Deus era racista, houve uma repercussão muito grande que rompeu as barreiras da internet. Eu fui dado como louco e que o que eu havia dito não tinha fundamento nenhum, além de quase ter sido apedrejado. Para contraporem a minha afirmação, disseram que Brasil afora existem pastores negros e que também  algumas cantoras pentecostais são negras. Como se a existência de negros em um espaço é suficiente para inibir a presença do racismo, coisa que não é verdade.

Claudia di Moura integra o elenco da novela Segundo Sol (2018). Imagem: Divulgação/ TV Globo. 

     Claudia di Moura é uma atriz com longa trajetória no teatro que fez sua esteia na televisão em 2018, aos 53 anos de idade. A atriz conta que escolheu a dramaturgia por causa do preconceito da Igreja Católica. Ela sempre queria ser o anjo em peças teatrais da igreja e nunca podia ser por conta da cor de sua pele. Ela era sempre a primeira menina a colocar o nome na lista, mas diziam que a mesma já estava lotada. Ela cansou de chegar primeiro e até mesmo madrugar, mas a oportunidade de interpretar um anjo não lhe foi dada. Percebendo a tristeza de Claudia, davam para a então menina uma poesia para ela declamar, onde ela depositava toda a tristeza por não poder ser o anjo.E tudo isso por conta da concepção racista de que crianças negras não podem interpretar anjos. Na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty)  de 2017, a professora de Educação Física aposentada Diva Guimarães fez os presentes, inclusive o ator Lázaro Ramos, também presente no evento, irem às lágrimas. Diva disse em um emocionante depoimento que as freiras do colégio onde ela estudou certa feita contou a seguinte história para justificar o tom de pele das pessoas negras: Jesus criou um rio e mandou todos se banharem ali. Estas freiras contaram que as pessoas brancas têm a pele clara porque não são preguiçosas e chegaram primeiro ao rio. Já as pessoas negras, por serem preguiçosas, chegaram ao rio por último, encontrando uma água suja e só molhando as palmas da mão e as solas dos pés. Seria por isso que os negros têm as palmas da mão e as solas dos pés brancos. Repugnante é pouco para esta história.

Conclusão 

     O racismo é uma realidade em muitas igrejas brasileiras (e também de outros países) e isto é algo contraditório, pois Jesus ensinou a amar ao próximo "como a ti mesmo". Este amor que Jesus ensinou não foi um amor sujeito às condições financeiras, raça, gênero e religião de alguém. Jesus ensinou o amor incondicional, que independe de tudo isso. É por esta razão que é contraditório um cristão ser racista. Provavelmente, este não colocou em prática e/ou não aprendeu o amor ensinado por Cristo. 

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