Ulysses Martin. Imagem: Reprodução/Facebook. |
O entrevistado do mês de abril do blog A Hora é Ulysses Martins. Ele é morador do Complexo da Maré desde que nasceu, exerce a profissão de eletricista e faz graduação em Serviço Social. Esta entrevista foi dada gentilmente por Ulysses em sua residência, um lugar tranquilo, acolhedor e com muitos e muitos livros. Nesta entrevista bastante enriquecedora, Ulysses falou de política, religião, Teologia da Libertação, as personalidades deste movimento que o influenciam, fez uma breve análise das Assembleias de Deus, disse o papel que acredita que a igreja deve exercer em uma periferia e também falou do assassinato da vereadora Marielle Franco, executada no mês de março e que, assim como Ulysses, era nascida e criada no Complexo da Maré. A entrevista pode ser conferida abaixo:
1 - A Hora: Costumo iniciar uma entrevista perguntando sobre a infância do entrevistado. Você pode falar como foi a sua?
Ulysses Martins: Minha infância foi normal, tranquila. Tive problemas devido a separação dos meus pais, quando tinha sete anos de idade. Nesse período eu sofri um pouco, mas superei. Sou nascido e criado no Complexo da Maré. Sempre morei nesta casa onde estou dando esta entrevista para você neste momento.
2 - AH: Quando aderiu a religião cristã?
UM: Na verdade, a minha mãe e a minha avó sempre foram evangélicas. Então, eu cresci ouvindo os cânticos religiosos e frequentando a igreja. E quando eu tinha 13 anos de idade, eu decidi seguir esta religião.
3 - AH: Você frequentou a igreja Assembleia de Deus por muitos anos. Na sua opinião, quais os pontos positivos e negativos desta denominação?
UM: Bem, os pontos positivos... são as contradições, não é? Eu creio que a doutrina bem fechada me protegeu de tomar um caminho precipitado, ao mesmo tempo que esta doutrina muito fechada te priva de uma liberdade e de conhecer um pouco a vida. Há está contradição. Ao mesmo tempo que aquilo me protegeu de um caminho ruim ou precipitado na minha vida sentimental, me livrando até mesmo de uma paternidade precoce, como aconteceu com muitos amigos meus. E a Igreja sempre com aquele discurso de casar e de sexo só depois do casamento... Então, eu creio que isso me livrou da possibilidade de ter sido pai muito cedo.
4 - AH: Você é um protestante que tem certa afinidade com o catolicismo. Isso não seria contraditório?
UM: Para algumas denominações, como as pentecostais, isso é uma coisa contraditória. Mas na origem protestante já tem um lado mais ecumênico, mas nem foi pela igreja protestante que essa afinidade começou. Quando comecei a frequentar a Igreja Presbiteriana, eu ainda tinha esse receio, mas esse sempre foi um caminho que eu fui tomando. Fui conhecendo as pessoas, acredito que me tornando mais humano, eu comecei a pensar: "Como é que pode uma pessoa estar ali em um ambiente daquele e não ser salva?" ou ir para o inferno, como muitas vezes ouvi falar. Eu acredito que Deus não tem esse monopólio de alguma religião. Então, eu acredito que a religião é uma manifestação cultural e cada um tem um certo entendimento daquela palavra, como é dito. Desta forma, eu comecei a me aproximar porque a doutrina católica tem um acervo muito grande de espiritualidade. Infelizmente, com a Reforma Protestante, para poder se diferenciar, muita coisa se perdeu. Então, dentro da Igreja Católica você tem um referencial de espiritualidade muito grande.
5 - AH: Ulysses, a sua visão político-ideológica é influenciada pela Teologia da Libertação. Quando conheceu tal teologia e quais as figuras desta corrente que lhe influenciam?
UM: Desde pequeno eu sempre gostei de política. Por volta de 2014, quando começou a campanha do Marcelo Freixo (PSOL) para deputado estadual, eu fui conhecendo muita gente. Conheci pastores, conheci algumas lideranças, fui ouvindo falar em alguns líderes, como por exemplo Leonardo Boff e Frei Beto, que sempre apoiaram a esquerda. Dali, fui conhecendo, fui pesquisando e procurando saber. E foi assim que eu conheci a Teologia da Libertação. Eu conheci o Frei Carlos Mesters e Dom Pedro Casaldáliga. Conheci também algumas pessoas estrangeiras que são adeptas deste movimento, como o padre e ex-guerrilheiro sandinista Ernesto Cardenal da Nicarágua e o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez, fundador da Teologia da Libertação.
6 - AH: No Complexo da Maré tem ocorrido nos últimos anos uma verdadeira proliferação de igrejas evangélicas. Isso é bom ou ruim?
UM: Eu acredito que a religião tem os dois lados. Ela pode alienar, como ela pode emancipar. A religião também serve como um antídoto para aplacar um pouco o sofrimento das pessoas. E isso é um pouco perigoso porque tira elas da luta, ela fica esperando um Deus que vai abençoá-la, que se ela trilhar um caminho, ela vai ser próspera de algum jeito e isso acaba sendo uma ferramenta das classes dominantes para que as pessoas estejam ali, naquele mundinho esperando algo acontecer e as coisas não são assim. Mas eu também não posso negar que a religião ajudou muita gente. Muitas pessoas saíram do tráfico, da criminalidade e até mesmo de vícios por causa da religião. Então, eu acredito que a religião tem essa contradição. Este fenômeno é bom e também é ruim. Há estes dois lados.
7 - AH: Esta pergunta está relacionada a anterior. Na sua opinião, qual o papel que a Igreja deve exercer em uma favela?
UM: Eu acho que a Igreja tem que tratar dos problemas espirituais da pessoa, trazendo consolo porque, como eu tenho fé, não acredito que só os bens materiais ou uma vida próspera vai ajudar as pessoas em tudo. As pessoas têm seus problemas, seus traumas e seus medos. Ainda mais que moramos em um lugar com tantos problemas, como por exemplo a violência. Mas acho que o papel é sempre tentar emancipar as pessoas. Cristo e os profetas por exemplo denunciavam as mazelas sociais, as desigualdades e também mostravam como lutar. Um exemplo muito claro disso é uma passagem do Velho Testamento, do livro de Daniel, se eu não me engano. Saiu um decreto que dizia que as pessoas não podiam exercer sua religião ali. E haviam três pessoas que ali que exerceram e por isso foram condenadas. Ou seja: o evangélico tem que mostrar a pessoa que ela tem que lutar pelo que ela acha que é justo, pelo que ela acha que é certo e não se submeter a um sistema porque infelizmente a neutralidade tende sempre a cair para o lado de quem está dominando.
8 - AH: As igrejas orgânicas são uma alternativa ao cristianismo institucional?
UM: Eu creio que sim. Eu conheci algumas pessoas que tentam viver ali uma vida bem simples, uma vida não muito hierarquizada e sentam todos ao redor da mesa. Eu creio que eles tentam resgatar um pouco do cristianismo primitivo. Eles procuram também viver uma vida simples, sem a força da religião ditando tudo o que a pessoa tem que fazer. Eles procuram também viver uma vida onde as pessoas possam ter uma espontaneidade, uma espiritualidade. Acredito sim que as igrejas orgânicas são uma alternativa.
9 - AH: Me lembro de você já ter dito que não gosta muito de balada gospel e similares. Você pode dizer por quê?
UM: Olha, eu acho que tudo que a Igreja tenta copiar de fora para poder juntar pessoas, fazer algo alternativo aquilo que eles dizem que é do mundo, acaba ficando "cafona", muito sem graça e feio. Eu acredito que por proibir muitas pessoas de participar de certos eventos, a Igreja tende hoje em dia a compensar, colocando o nome de "gospel" em uma coisa que seria mundana. Eu acho que seria melhor se a pessoa curtisse um baile, com a sua mentalidade de cristão, indo para se divertir, para brincar ou indo para um forró ou algum tipo de balada e ali vivesse sua vida de cristão, do que a Igreja ter que se prestar a isso. Eu acho feio, não gosto.
10 - AH: Esta pergunta está relacionada a pergunta feita acima. Você acha que convém para um cristão ouvir música secular?
UM: Eu tenho certeza que esse movimento de não fazer isso, não fazer aquilo, teve origem no começo do século XX nos EUA, com aquelas igrejas de uma busca de uma santidade, de algo muito além do que a gente está vivendo. Para mim, música é música. Eu acredito que as pessoas saíram um pouco daquilo que representa a música. Eu acho que a música tem que apontar a vida, cantar a beleza da vida, mas também denunciar nossas mazelas sociais e nossos problemas. O papel da música também é trazer uma indagação para as pessoas, levando as mesmas a denunciarem aquilo que não está certo. E eu acredito que desde o passado não houve essa diferenciação entre o que é música secular e o que não é. Os tempos mudam. Até pouco tempo, em muitas igrejas não podiam tocar guitarra elétrica e nem bateria e hoje em dia já pode. Ou seja: era pecado e agora não é? Acredito que é um pensamento de época e também muito fechado. Eu acho que música é uma coisa universal.
11 - AH: E o sexo antes do casamento. É lícito para um cristão?
UM: Bem, eu não tenho restrição a isso. Eu acho que a própria religião de tanto proibir, gera em alguns casos pessoas com um desejo muito grande por conta da excessiva proibição. É uma linguagem meio estranha o que eu eu vou falar aqui, mas é aquilo: o não gera o tesão. E por que não, se é uma coisa boa? Eu acho que a Igreja pega um versículo fora de seu contexto para condenar a fornicação. Só que no original, fornicação era uma prática que se tinha nas pilastras de um templo onde as pessoas se prostituíam. Ali não tinha amor, ali não tinha paixão e ali não tinha carinho. Era uma perversidade o que havia ali. E neste local havia até abuso de mulheres, onde algumas mulheres eram forçadas a ter relações. Eu acredito que o sexo tem que ser ensinado e que tem uma hora certa para acontecer. Mas quem vai dizer isso é a própria pessoa. Eu acredito que se as igrejas tratarem o sexo de uma maneira mais branda, de uma maneira mais natural, as pessoas não teriam tantos problemas, não teriam tantos traumas e não teriam tanto medo de pecar.
12 - AH: Você tem uma afinidade política com o PCB. Quando começou essa relação?
UM: Eu sempre gostei de política, como lhe falei, mas sempre acreditei que o cristão tinha que estar na política. Na Bíblia, muitos profetas e pessoas exerciam papéis políticos. Daniel e muitos outros que agora eu não lembro o nome são alguns exemplos. E eu sempre tive o desejo de conhecer o comunismo. É a única doutrina que prega o comum e eu sempre tive uma afinidade com o comum, com o partilhar. Então, eu fui conhecendo alguns partidos e eu vi que o PCB tinha uma corrente de pensamento mais sólida. O PCB tem uma teoria. E eu preciso aprender e conhecer o marxismo, o leninismo e os movimentos que aconteceram ao redor do mundo. E eu não só me aproximei do PCB, como estou militando por este mesmo partido. Estou em uma célula e tenho achado muito bom. Houve alguns excessos em algumas épocas, houve alguns problemas e muitos acham que para ser comunista tem que ser ateu. Bem, 90% dos comunistas se declaram ateu, mas hoje em dia não tem tanto isso. Creio que no passado já não tinha. Tem muita mentira que as pessoas jogam para difamar estes tipos de movimentos que buscam a emancipação dos trabalhadores. Estou militando pelo PCB e não vejo contradição nenhuma nisso.
13 - AH: Pelo fato de você residir no Complexo da Maré e por conta de sua militância política, não tem como não falar disso. De que maneira você enxerga a execução de Marielle Franco?
UM: É uma morte, claro. Nós sentimos as dores dos familiares, dos entes queridos, mas tem uma peculiaridade nessa morte. Não estamos aqui dizendo que uma morte é mais importante que a outra. A Marielle tinha um mandato popular. Então, nós nos sentíamos representados por ela. Ela era uma mulher lutadora, que lutava pelos direitos dos LGBTs, dos negros e dos favelados. O assassinato dela representa um golpe para todos nós. Porque, se ela estava lutando pela gente, esse tiro foi um recado bem dado, foi contra nós. A morte dela também atingiu a gente. Atingiu os movimentos que ela representava. É como se dissessem: "vocês fiquem no canto de vocês, o lugar de vocês não é aqui". Quando eu recebi a notícia da morte dela, parece que eu perdi alguém da minha família e até hoje existe uma lacuna, um vácuo. Isso porque foi um tiro em cada um de nós. Arrancou um pedaço de cada um de nós.
14 - AH: Você pode deixar uma mensagem para os leitores do blog A Hora?
UM: A mensagem que eu deixo aqui é que, se existe algo na vida e este algo vai trazer a emancipação, vai tirar alguém da exploração, essa causa tem que ser levada até o fim. Se deve lutar por ela e eu acredito que isso é o que a gente pode fazer na nossa vida. Uns preferem viver como se nada tivesse acontecendo e outros dão a vida por uma causa. E eu acredito que o caminho é darmos a vida por aquilo que achamos que é justo. É como disse a Olga Benário (1908 - 1942) em uma carta que ela escreveu para Luís Carlos Prestes (1908 - 1990) antes de ser morta em uma câmara de gás: "lutei pelo bom, pelo justo e pelo melhor do mundo".
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