06/03/2018

O racismo e o elitismo do judiciário brasileiro

A estátua de olhos vendados e com uma balança na mão representa a imparcialidade da justiça, mas será que esta imparcialidade existe na prática? Imagem: Reprodução. 

     Esta não é uma situação que acontece somente no Brasil, mas vamos focar aqui no país. Com frequência, notícias na televisão e na internet colocam em xeque a parcialidade da Justiça brasileira, mas você já parou para pensar qual é a origem de tudo isso?
      Ao contrário dos demais países da América Latina e também da Europa, o Brasil só veio ter a sua primeira universidade no século XX. Esta universidade é a USP (Universidade de São Paulo), fundada no dia 25 de janeiro de 1934. Antes disso, os filhos dos barões do café iam para a França ou qualquer outro país da Europa para estudar. Os cursos que estes jovens (homens em sua grande maioria) cursavam eram Direito ou Medicina. Não se fugia muito disso. Uma vez de volta ao Brasil, estes jovens assumiam os negócios dos pais, que poderia ser uma fazenda e/ou uma fábrica por exemplo. O Brasil só veio ter a sua primeira Faculdade de Medicina no ano de 1808 (por outro lado, o vizinho Peru já tinha uma universidade desde 1551), que foi fundada na Bahia. Já a primeira Faculdade de Direito no Brasil foi fundada por D. Pedro I (1798 - 1834) em Olinda (PE). No mesmo dia, foram criados simultaneamente dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, um em Olinda e outro na cidade de São Paulo (Faculdade de Direito de São Paulo), sendo desta forma a faculdade de Direito mais antiga do Brasil ao lado do curso paulistano.
     Antes de continuar com o texto, é preciso fazer duas observações. A primeira é a diferença entre faculdade e universidade. No senso comum, é tudo uma coisa só, mas uma análise mais profunda mostra que não é bem assim. Faculdade é uma instituição de ensino superior cuja finalidade é basicamente o ensino. Já universidade é uma instituição de ensino superior que reúne ensino, pesquisa e extensão. A segunda observação a ser feita é que, mesmo tendo passado mais de cem anos desde a fundação das Faculdades de Direito e Medicina no Brasil, os cursos em questão ainda são considerados cursos da elite. É fato que de lá para cá houve uma mudança significativa neste quadro, mas o fato é que a universidade ainda é um espaço elitista e os cursos de Medicina e Direto (o foco do texto) são ainda mais elitistas. Em mais de 90% dos casos, quem entra em tais cursos são pessoas que estudaram a vida toda nos melhores colégios da rede privada de ensino, são filhos de pais com grande poder aquisitivo e tiveram a chance de aprender outros idiomas. Uma pessoa que não teve estes privilégios pode até entrar para o curso de Medicina, mas o caminho para ela alcançar seu objetivo será muito mais difícil. Tenho um amigo que veio de família humilde e que a vida toda estudou em colégios públicos. Na hora de tentar o vestibular, ele quis entrar para o curso de Medicina. Foram cinco anos tentando, até que em 2014 entrou para o tão sonhado curso.

Charge ironizando a abolição da escravatura no Brasil. Houve mudanças profundas na sociedade? Imagem: Reprodução. 

     Os filhos da elite que iam para a Europa estudar Direito ou Medicina e que mais tarde iriam para as faculdades recém-fundadas no Brasil, se formavam e iam trabalhar nos negócios da família. Estes mesmos filhos da elite trabalhavam (e ainda trabalham) com o interesse de criar leis que beneficiassem as suas famílias, bem como garantir os privilégios do grupo social no qual estam inseridos. A escravidão foi abolida em 1888 e no ano seguinte houve o golpe militar republicano, onde a monarquia foi substituída pela república. Estes dois eventos não trouxe mudanças profundas para a sociedade. Não havia motivos para comemorar a abolição da escravatura porque a grande maioria dos negros não sabiam ler e escrever, não tinham uma profissão formal e não tinham para onde ir. Desta forma, muitos escravos continuaram trabalhando para seus senhores depois da abolição da escravidão. Já república é um termo de origem latina que significa "coisa pública", mas a república brasileira de pública não tem nada. No Brasil, ela foi implantada para que a alta sociedade continuasse a desfrutar de seus privilégios. A estrutura social continuou sendo basicamente a mesma. Neste contexto, somente os filhos das altas classes sociais estudavam Direito e Medicina. E eles faziam isso com a finalidade de garantir os privilégios de suas famílias e da alta sociedade.

Negro e pobre, Rafael Braga é um caso emblemático quando o assunto é o racismo do Judiciário brasileiro. Imagem: Reprodução. 

     Na atualidade, o curso de Direito é feito pela elite e para a elite. A grande maioria das pessoas que ingressam neste curso são pessoas que estudaram em excelentes colégios da rede privada de ensino e que tiveram a oportunidade de fazer muitos cursos. Uma pessoa de origem humilde e que teve que estudar a vida toda em precárias instituições de ensino consegue ser aprovada no vestibular de Direito, mas o caminho para ela será muito mais estreito. Tenho uma amiga que estudou quatro anos para ingressar no curso de Direito. Essa mesma amiga estudou a vida toda em colégio público, cujas precariedades conhecemos muito bem. Ela fez inúmeras provas de vestibular, mas não tirava nota suficiente para ser classificada, mas depois de quatro anos ela atingiu seu objetivo.
     Não tem como falar de racismo do Judiciário brasileiro sem citar o caso do jovem Rafael Braga. De origem humilde, com pouca instrução e negro, Rafael foi preso durante uma das muitas manifestações das chamadas Jornadas de Junho de 2013. Rafael não sabia as razões da manifestação, mas mesmo assim foi preso por portar garrafas de produtos de limpeza. Segundo os policiais que o prenderam, Rafael estava com Coquetel Molotov na bolsa e estava participando da manifestação, o que não é verdade. Além disso, Rafael foi acusado de ser traficante, o que também não é verdade. O fato é que já se passaram quase cinco anos desde que Rafael foi preso pela primeira vez, em 2013. Ele é a única pessoa presa nas Jornadas de Junho de 2013 que ainda responde na Justiça. Quando Rafael Braga foi preso sob a acusação de tráfico de drogas, ele portava somente 0,6 gramas de maconha, o suficiente para uso pessoal e nada mais. Por outro lado, Breno Fernando Solo Borges, filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, Tânia Freitas, foi solto depois de ser preso com 130 quilos de maconha e com munições. Alegando problemas de saúde, Breno foi transferido para uma clínica voltada para o tratamento de Transtorno de Personalidade Limítrofe, mais conhecida como borderline. Se mesmo o caso de Rafael Braga ter uma grande repercussão na mídia e nas redes sociais, ele ainda responde na Justiça, imagina o que deve acontecer com aqueles jovens negros que são presos pela polícia com flagrantes forjados. E o que dizer daqueles que são mortos sob a falsa acusação de que eram traficantes e a família, muito humilde, não tem como pagar um advogado. Este é outro ponto que quero levantar. Somente pessoas com grande poder aquisitivo podem ter um advogado particular, uma vez que os serviços de advocacia não costumam sair barato. E quem não tem condições, procura ajuda na Defensoria Pública, correndo o risco de ver o processo se arrastar por muito tempo.

Após a repercussão e a atuação de movimentos sociais, Jéssica Monteiro teve direito a prisão domiciliar. Imagem: Reprodução. 

     Em fevereiro de 2018, Jéssica Monteiro, uma mulher pobre e negra, foi presa sob a acusação de tráfico de drogas. Ela estava nos momentos finais da gestação e entrou em trabalho de parto um dia depois de ser presa Polícia Militar. Foi para o hospital ter o bebê, mas como o juiz preferiu manter a mesma presa, Jéssica teve de voltar à cadeia com a criança. Uma foto onde Jéssica aparece com seu bebê em um colchão colocado no chão sujo dentro de um local igualmente sujo circulou pelas redes sociais e mobilizou diversos movimentos sociais. Após a grande repercussão negativa do caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu prisão domiciliar à Jéssica para que ela possa cuidar de seu bebê. Por outro lado, Adriana Ancelmo, uma mulher rica, branca e esposa de Sérgio Cabral, ex-governador do estado do Rio de Janeiro e que atualmente está preso, teve direito a prisão domiciliar sem nenhuma contestação. O argumento dado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes foi de que a maternidade e a infância fossem protegidas, uma vez que os filhos de Adriana e Sérgio Cabral são crianças. Adriana Ancelmo é uma mulher rica, mora em uma área nobre da cidade do Rio de Janeiro e tem empregados a sua disposição. Ainda assim, teve direito à prisão domiciliar para cuidar das crianças. E estes são apenas os casos que aparecem na mídia. Muitas mulheres negras que estão presas acabam tendo seus filhos nas piores condições possíveis. Como muitas delas não têm direito a prisão domiciliar, elas acabam entregando seus filhos para os familiares ou até mesmo para a adoção quando os mesmos têm cerca de seis meses de vida. Uma vez que ficarão longe dos filhos, elas acabam desmamando os mesmos ainda muito cedo e os iniciando nas famosas papinhas. Isso é feito de forma muito precoce, em uma fase da vida em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomenda para tirar o leito materno do alimento dos bebês.

Conclusão

     Os membros das altas classes sociais iam para a Europa a fim de cursarem Direito ou Medicina. Depois que fundaram no Brasil a Faculdade de Direito e a Faculdade de Medicina, tais membros não mais necessitavam ir até o continente europeu e fazer tais cursos. Depois de formadas, as pessoas que fizeram tais cursos iam trabalhar para defender os privilégios e interesses de suas famílias e de sua alta classe social. Isso aconteceu em um momento em que o Brasil era um país escravocrata. A escravidão foi abolida, mas a estrutura escravista não. Desta forma, o curso de Direito continua sendo um curso feito pela elite e para a elite. 

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